Remexendo
o passado.
O dia seguinte, além das preocupações
próprias, tinha ainda a preocupação em rebuscar os recantos da memória em busca
de um nome eu pudesse trazer uma luz para o problema novo que surgira. Os
primeiros a serem chamados a prestar auxilio nesse afã, foram Pedro Paulo e
Maria Conceição. Tinham convivido com Joaquim nos anos em que ele ainda era
adolescente. Se alguém podia ajudar a encontrar uma testemunha capaz de
derrubar o falso testemunho que o pretenso parente distante constituira.
Começaram por fazer uma lista de todos os nomes de pessoas que tinham convivido
naquele tempo.
Um a um os nomes iam sendo eliminados
quando lembravam da época e localidade de sua morte. Muitos haviam saído dali
para trabalhar em outras fazendas sem nunca voltar nem dar notícia. Outros se haviam
afastado por força de casamento e outros acontecimentos. Sua comunicação ficara
cada vez mais esparsa até sumir da lembrança mais constante. Depois de muito
remexer e analisar a lista, acrescentar um ou outro nome antes esquecido,
identificaram dois que poderiam ser encontrados na região. Fazia tempo que não
ouviam deles, mas também não haviam sabido de seu falecimento ou ida para mais
longe. Apenas a agitação do cotidiano, as ocupações diárias, acabaram deixando
essa lembrança relegada a um plano bem distante.
Os últimos paradeiros foram lembrados. Um
deles tinha o nome de Bráulio Barbosa e seu último endereço fora uma rua
próxima ao rio Uruguai na cidade de São Borja. Faltava lembrar o nome certo da
rua. O crescimento da cidade nos últimos anos, novas ruas sendo abertas, outras
modificadas, edifícios sendo contruídos a cada dia, poderiam tê-lo levado a
mudar de endereço. O outro nome era Ernestina Fontes. Ela casara com um tal
Tarcísio Dantas e fora morar numa fazenda a cerca de 50 km dali, onde o marido
era capataz. Certamente ainda estavam por lá. Do contrário alguém saberia dizer
onde se encontrava.
Diante dessa constatação, faltava
encontrar ao menos uma dessas duas pessoas e ver se ela teria condições de
testemunhar. Um bom número de antigos servidores daquele tempo não mais vivia.
Quando Joaquim assumira a fazenda o pessoal estava em uma faixa de idade um
pouco elevada. Foi preciso renovar, do contrário chegaria o momento em que
teria apenas uma porção de idosos para fazer o trabalho. Isso não era bom.
Muitos receberam uma boa ajuda financeira e foram morar na cidade, outros
ficaram em casinhas da fazenda até o fim de seus dias. Assim não restavam na
propriedade pessoas que tivessem vivido os dias da infância e adolescência de
Joaquim, além de Pedro Paulo e Maria Conceição. Os demais eram todos mais
jovens e haviam entrado para o serviço mais tarde.
O dia estava perto do final e Gaudêncio
propôs ao padrinho irem até a cidade ver se conseguiam logalizar o senhor
Bráulio Barbosa. Quem sabia a rua com certeza era Maria Conceição, pois
visitara a família algumas vezes nos primeiros anos que ali moravam. A presença
dela na hora da ordenha não era imprescindível e decidiram leva-la junto.
Chegaram à praça perto da Igreja, de onde ela sabia se orientar. Houve um pouco
de estranhamento devido às modernizações do lugar, mas ela sabia o número de
quadras a serem percorridas e cada direção. Dessa forma chegaram ao local que
ela reconheceu como sendo o endereço de que lembrava. As casas estavam todas
envelhecidas e necessitando de reformas. O crescimento da cidade chegava perto
e logo as construtoras viriam e fariam ofertas elevadas para adquirir os
imóveis.
Em no máximo dois ou três anos, se é que
demoraria tanto, ali estaria tudo transformado em conjuntos de apartamentos, o
térreo ocupado por lojas e outros estabelecimentos. Tinham que começar por
algum lugar e por isso pararam para indagar. A casa em questão estava
desocupada. Perguntaram a uma vizinha, na faixa de cinquenta para sessenta anos
e ela lhes disse que conhecera a família. Eles haviam mudado para um bairro
mais distante um pouco. Fazia poucas semanas, pois tudo ali havia sido comprado
por uma construtora. Ela mesma iria se mudar em poucos dias. Aguardava apenas
seu novo lar ficar pronto.
Informou-lhes o endereço dos antigos
vizinhos e eles agradeceram. Procuraram pelo novo endereço, perguntando em um e
outro lugar, chegando assim a um pequeno conjunto residencial. Casas de
alvenaria, ruas asfaltadas, calçadas bem arrumadas, tudo muito bonito. Deveria
ter sido ótimo mudar-se da casa de madeira, velha, caindo aos pedaços e ainda
guardar um bom dinheiro que restara da venda do terreno, bastante valorizado
pela expansão imobiliária na região.
Maria Conceição foi quem bateu no portão e
logo uma mulher nova veio atender. Ao ser inquirida sobre a residência ali de Bráulio
Barbosa ela confirmou. Era seu pai e estava em casa. Se aposentara algum tempo
antes.
- Eu sou Maria Conceição. Conheci seu pai
na fazenda Santa Maria. Este aqui é seu Joaquim, filho dos antigos donos. Esse
outro é meu filho Gaudêncio. Será que podemos conversar um pouco com seu pai?
Ela correu até a porta e falou com alguém
lá de dentro. Logo um homem de cabelos embranquecidos, um pouco curvado,
trazendo os sinais da idade, do muito trabalho, bem marcados no corpo, saiu e
veio até o portão. Ao olhar bem para os visitantes, reconheceu Joaquim e Maria
Conceição.
- Mas se não é o Quinzinho! E Maria
Conceição! Entrem, vamos conversar.
O portão
foi aberto e os três entraram, indo para a modesta sala de estar, onde havia um
grupo estofado onde se acomodaram.
- Mas a
que devo a honra dessa visita inesperada? Inda outro dia tava contando para
minha fia sobre o tempo que vivi na fazenda. Bom tempo aquele. Lembra de nossas
estripulias nos pastos e capões de mato, Joaquim?
- Se
lembro, Bráulio. Éramos uma bela turma de moleques. Quanto aprontávamos.
- Faz bem
uns quarenta anos que a gente não se vê. A Ceição veio ver a gente algumas vez.
Depois também sumiu e nunca mais.
- Tantas
coisas que acontecem e o tempo passa. Nem sei como é que isso se dá.
- Mas eu
estou velho, aposentado graças a Deus. Minha velha casa vendi por bom dinheiro
e recebi essa na troca. Sobrou um bom troco que apliquei no Banco do Brasil.
Assim fica uma garantia para as horas de precisão.
- Pois é
Bráulio. É ótimo encontrar você aqui. Mas e sua esposa, ainda é viva? – disse
Maria.
- A
Josefina me deixou faz coisa de quatro ano, Ceição. Deu um tal de apoplexia
nela e levou ela de mim. Nem magina a farta que me faz.
- Lamento
muito, amigo. Vamos ao assunto que nos traz aqui.
- Pode
falar, que estou pronto para ajudar o amigo. Nem pode imaginar o contentamento
que me trazem.
- Não sei
se você soube, mas meus pais e meus irmãos morreram num acidente com nosso avião
lá para o lado da Serra do Mar, num dia de tempestade. Fiquei sozinho para
cuidar da fazenda. Já era casado e não tivemos filhos. A finada herdou a
propriedade vizinha e juntamos tudo num só pedaço. Questão de uns cinco anos
ela também faleceu de modo semelhante à sua Josefina. Fiz o inventário e decidi
nomear nosso afilhado, o Gaudênio aqui, filho da Conceição e do Pedro Paulo.
Lembra dele?
- Pedro
Paulo? Lembro sim. Era um dos mais espevitado da turma.
- Ele
casou com a Ceição e tiveram só esse filho, nosso afilhado. Nós íamos adotar um
menino, mas com a vinda do afilhado, desistimos e resolvemos fazer dele nosso
filho.
- Muito
justo.
- Pois como ia falando, nomeei ele meu
herdeiro. Agora me aparece um porqueira de um camarada, lá dos tempos de meu
bisavô, dizendo que foi criado na fazenda, que era como filho para meus pais e
arrumou até testemunha. Moral da história. Quer derrubar meu testamento e se
fazer de herdeiro de tudo que tenho.
- Mas e
tem direito?
- Teria se
não houvesse meu direito antes de nomear meu herdeiro de livre e espontânea
vontade. Até seria justo deixar algo para ele se o que diz fosse verdade, mas
não é.
- E qual é
o nome desse infeliz?
- Um tal
de João Ribas Vargas. Lembra se tinha alguém desse nome na fazenda quando nós
éramos moleques, depois rapazes? Principalmente sendo criado por meus pais,
meio agregado.
- Tinha
ninguém com esse nome, não amigo Joaquim. Isso eu tenho certeza. Posso contar
nos dedos e dizer os nomes de um por um. Graças a Deus tenho boa memória ainda.
- Você
está disposto a nos ajudar a derrubar a mentira dele na justiça?
- Pode
contar com o Bráulio aqui. Onde se viu uma coisa dessa?
- Vamos
fazer um churrasco dia desses e venho lhe buscar, ou mando o afilhado para
vocês passarem um dia na fazenda.
- Me avisa
antes, pra mo de não ter outra coisa em vista.
- Eu mesmo
tenho casa aqui na cidade e podemos passar umas horas juntos no clube. Agora
que sei seu endereço venho de vez em quando aqui.
- Mas não
querem esperar um chimarrão? Sempre tem um mate pra servir os amigos.
- Nós
vamos indo. O afilhado tem aula para assistir e nós vamos para a minha casa
onde a empregada vai preparar nossa refeição. Outro dia nós viemos conversar e
tomar mate.
- Não
esquece de me avisar antes da audiência lá no juiz. Vamos desmentir essa
embrulhada toda.
Sairam
levando um imenso alívio no coração. Se encontrassem a outra testemunha ficaria
mais forte o embasamento da sua resposta ao questionamento judicial do
testamento. Poderiam continuar mais tranquilos. Ao chegarem à casa de Joaquim
ainda havia tempo de preparar uma refeição rápida antes de Gaudêncio ir para a
aula. Joaquim pegou o telefone e ligou para o advogado e lhe explicou seu
achado. Havia testemunhas vivas da época em que o pretendente a herdeiro dizia
ter vivido na fazenda e ser considerado como filho pelos pais de Joaquim. O
jurista lhe afirmou que isso era importantíssimo, aliás fundamental na obteção
de uma sentença contrária às pretensões do postulante.
Joaquim
lhe falou que havia ainda a possibilidade de outra testemunha estar apta a
prestar depoimento. Precisaria apenas fazer uma pequena viagem até a fazenda
onde supunham que ela residia.
- Assim
fica melhor ainda. Mais de uma testemunha ocular para confirmar os mesmos
fatos, torna o processo praticamente ganho. Pode deixar com a gente que o resto
nós cuidamos, - falou o advogado.
- Eu lhe
agradeço. Depois de derrubar essa mentirada, vamos comemorar com um belo
churrasco e cerveja.
- Isso
mesmo, amigo.
Maria
Conceição estava na cozinha ajudando a ultimar a refeição e conversando com a
cozinheira. A vivente passava grande parte do tempo sozinha na casa. Costumava
trazer uma neta para passar algumas horas com ela, mas a menina começara a
trabalhar. Com isso tinha menos tempo disponível. À noite também ia para a
escola, mas em outra mais perto da casa dos pais dela. Ficou satisfeita em ter
companhia pelo menos por algumas horas. Não se queixava de resto, pois o
salário era bom e o serviço pouco. Pesada mesmo era a solidão. Seus dedos
estavam calejados de tanto manejar as aguhas de tricô e crochê. Todos os netos
ganhavam alguma blusa, um casaquinho feito pela avó. Formavam fila esperando a
vez. Logo começariam a vir os bisnetos e ela teria mais com que se preocupar.
A conversa
estava animada quando Joaquim e Gaudêncio chegaram perto da porta. Puseram-se a
ouvir e ficaram encantados com o que diziam. Maria Conceição acabava de
externar seu sonho de logo ter netos. Por ela o filho casaria logo e acabava
com essa andança dali para capital e voltar. Namoro assim dessa distância não
dava muito certo. Melhor casar logo de uma vez. Noivos já estavam, pareciam se
amar de verdade, para que esticar essa novela?
Joaquim
olhou para o afilhado e piscou. Depois cochichou:
- O que
foi que eu falei? Sua mãe também acha melhor vocês casarem logo.
- Só me
faltava essa agora. Minha mãe também me empurrando para o altar e diante do
juiz.
- Queremos
o seu bem, meu caro afilhado.
- Vamos
casar sim, mas quando nós marcarmos a data, nada de pressão por enquanto.
- Não tem
problema, contant que seja logo, - falou Joaquim rindo e entrando na cozinha.
As duas
mulheres levaram um susto e ficaram quietas instantaneamente. Haviam ouvido as
últimas palavras de Joaquim e se deram conta de que os dois provavelmente
tinham escutado o que elas tagarelavam ali alegremente.
- Eu
estava dizendo pro Gaudêncio que é melhor eles dois casarem logo. Essa história
de ficar enrolando corda não dá certo.
- Sabe que
eu também acho.
- Eu vou
comer alguma coisa e vou para aula. Do contrário chego atrasado. Vocês fiquem
aí fazendo fofoca.
- Ele fica
abespinhado quando a gente fala em casar, mas é a pura verdade.
- Vocês
vão esperar a hora que nós quisermos casar, nem antes, nem depois. Combinado?
- Pronto.
Não se fala mais nisso.
- Senta
aí, Gaudêncio. Vou lhe servir a comida.
Os outros
também sentaram ao redor da mesa da cozinha e comeram ali mesmo. Nada de
arrumar mesa especial, sujar toalha, tirar louças do armário. Pra ter mais
serviço depois? Era mais confortável comer ali mesmo, ao redor do fogão de
lenha. Ainda mais que os primeiros sinais do inverno estavam aparecendo. O
minuano vindo da Argentina, soprando e cortando que nem navalha. Terminada a
refeição, Gaudêncio saiu para escola e os outros três ficaram conversando,
mantendo fogo no fogão. Um chimarrão novo foi preparado e ficaram mateando,
lembrando os tempos de meninos, das diabruras que aprontavam. Tempo bom fora
aquele. As crianças de hoje nem faziam ideia do que era a infância antigamente.
Nesse
ritmo nem viram o tempo passar e logo o estudante estava ali, pronto para
retornarem à fazenda. A cozinheira se despediu um pouco triste. Por ela
poderiam ficar ali até o dia seguinte, mas sabia das ocupações que cada um
tinha. Joaquim e Gaudêncio planejavam no da seguinte correr atrás da outra
testemunha. Talvez a encontrassem facilmente, mas poderia também ter mudado de
destino e sabe lá Deus onde estaria a uma hora dessas. Embarcáramos três na
caminhonete e rumaram para a Santa Maria. A estrada estava boa, pois pegavam
apenas um pequeno trecho de chão, o resto era tudo asfalto. Tratram de irem
dormir logo, para levantarem cedo pela manhã.
Antes de
botarem o pé na estrada conferiram se todas as ordens estavam sendo seguidas e
relembraram os nomes do casal que iriam procurar, bem como o nome da fazenda
onde haviam ido viver. Se tudo corresse de acordo antes do anoitecer estariam
de volta. Se não fosse possível, encontrariam onde dormir e continuariam a
busca no outro dia. O nome da fazenda era Calavera. Os proprietários eram de
descendência espanhola. Não deveria ser difícil encontrar o lugar. Tudo determinado,
saíram para a estrada, seguindo pelo asfalto até um vilarejo a cerca de 35km.
Ali perguntaram pela fazenda e foram informados que deveriam sair do asfalto e
pegar a esquerda. Depois de uns quinze quilômetros, talvez mais um pouco
encontrariam uma encruzilhada. Em cada esquina havia uma árvore bem grande. Ali
deveriam seguir para direita e mais ou menos dois mil metros depois
encontrariam o portal com a placa. Não tinha erro.
Gaudêncio
estava saindo, quando Joaquim lembrou de perguntar ao informante.
- Sabe se
lá trabalha ou trabalhou como capataz um tal Tarcisio Dantas?
- Seu
Tarcísio, casado com dona Ernestina. Foi capataz sim, mas hoje está aposentado.
Quem está no lugar dele é o fio mais veio. Mas eles mora lá na fazenda.
No
primeiro instante Joaquim temeu receber uma notícia ruim quando o homem falou
que Tarcísio não era mais o capataz. Imaginou o pior. Logo porém seu coração
desacelerou, quando ouviu que eles moravam na fazenda.
- Obrigado
amigo. Passar bem. Até outra hora.
- No hai
de que, amigo.
- Se não
acharmos a tal placa escrito Calavera, nos próximos dois três quilômetros, nós
voltamos e seguimos para o outro lado.
- Vamos
prestar atenção para não passar sem ver a placa.
- Cuide do
seu lado padrinho, que eu cuido aqui do meu. Assim não vai escapar nem que a
placa seja desse tamanhinho.
- E alguém
lá ia fazer uma placa de fazenda tão pequena assim! Tinha graça isso.
Estavam
andando e quase passaram. A placa ficava alguns metros para dentro, com a
estradinha de acesso ladeada de árvores, formando uma alameda sombreada. O
proprietário mostrava ser um homem caprichoso. O arvoredo estava perdendo as
folhas por causa da estação. O caminho todo estava forrado de folhas mortas
caídas. Nem que houvesse alguém encarregado de varrer tudo diariamente, não
haveria como vencer. Melhor mesmo deixar cair tudo, depois passar o rastelo e
usar a folhagem toda par adubação verde. Seguiram por entre as arvores, ovindo
o chiado dos pneus nas folhas e pouco depois viram despontar, atrás de uma
pequena coxilha, uma bela sede de fazenda.
Estacionaram
e logo um homem já idoso, vestido em trajes tradicionais da região, saiu na
varanda da casa grande e saudou:
- Vamo
chegando, amigos. Na casa de Celestino Calavera não tem tramela, nem tranca.
Desembarcaram
e chegaram para perto dizendo:
- Buenos
dias, seu Celestino!
- Buenos!
As mãos
foram estendidas e apertadas mutuamente e o dono da casa convidou:
- Mas
subam aqui na varanda. Já ia tomar um mate. Tomam uma cuia comigo?
- Um mate
a gente nunca refuga.
Sentaram-se
e uma senhora, aparentando um pouco menos idade, trouxe a chaleira com água e a
cuia com o mate já cevado.
- Essa é
minha prenda velha, Marguerita.
- Bom dia
senhora.
- Bom dia.
O senhor
Celestino serviu um mate e tomou. Constatando que estava bem preparado, serviu
outro e alcançou a Joaquim, dizendo simultaneamente:
- Mas a
que devo a honra da visita dos senhores? Pai e filho se não estou enganado.
- Apenas
um pouco. Padrinho e afilhado. Mas agora é como se fossemos pai e filho.
- Eu acho
que lhe conheço, - falou Marguerita.
- É
possível. O seu antigo capataz casou com uma moça que morava na fazenda dos
meus pais, hoje minha.
- Eu
lembro do casamento. É a Ernestina do Tarcisio, não lembra Celestino?
- Não me
diga que o senhor é o Joaquim, filho mais novo da família lá da Santa Maria?
- Ele
mesmo.
- Lamentei
muito o ocorrido com sua família. Nós éramos bem amigos, embora nos víssemos
apenas vez ou outra.
- Mas nós
viemos justamente em busca do Tarcísio e principalmente da Ernestina.
- Eles
moram aqui pertinho. Ele foi capataz até coisa de dois anos passados. Está um
bocado adoentado e aposentei ele. Já tinha tempo de serviço e a doença tirou a
força e o pobre ficava desenxavido de não conseguir mais fazer as coisas.
- O tal
INPS é uma boa coisa. Pesa um pouco na hora de contribuir, mas depois traz uma
tranquilidade grande.
- Lá na
minha propriedade também aposentamos vários nos últimos meses. Ficam morando na
fazenda, os filhso trabalham lá na maioria das vezes. Ajudam um pouco na casa,
cuidam do jardim e duma hortinha para não ficarem desocupados.
- Mas que
mal le pergunte, por que estão procurando a Ernestina?
- Me
apareceu um caboclo metido a ser meu parente e quer contestar meu testamento.
Fiquei viúvo, fiz o inventário e depois deixei para o afilhado aqui meus bens.
Não tenho filhoso.
- Olha aí!
Um parente distante se achando com direitos. E garanto que é daqueles que nunca
moveu uma palha para ganhar um pila!
- Acertou
em cheio. Para complicar alega que tem testemunhas de que ele foi criado na
fazenda por meus pais e foi considerado como filho. O cretino tem quase minha
idade.
- Deixe
ver se entendi. A Ernestina é daquele tempo e pode testemunhar contra isso.
-
Exatamente. O sujeito nunca visitou meus pais. Tenho quase certeza de que nunca
os viu na vida.
- Com
certeza os pais do afilhado, como parte interessada, seriam desqualificados
como testemunhas.
- Na
mosca! Ontem encontramos um outro que também viveu lá e mora em São Borja. Ele
vai testemunhar e para garantir a parada seria bom se a Ernestina pudesse fazer
o mesmo.
- Olha ela
vindo aí! – disse Marguerita apontando para o lado das casas dos empregados.
- É ela
mesma. Envelheceu é claro, mas não deixa dúvida.
Em poucos
instantes Ernestina chegou e falou dirigindo-se à antiga patroa:
- Senhora
tem tempo para um dedo de prosa?
- Espera
aí, Ernestina, - falou Joaquim.
A
interpelada olhou por uns instantes e bradou:
- Eu não
acredito! É o Joaquim Monteiro!
- Como vai
você, Ernestina?
- Como vai
com todos os que ficam velhos. Começa a ficar encarangado, reumatismo de todo
lado, um tal bico de papagaio na coluna. Dói daqui, dali e nem sei mais donde.
- Coisas
da vida, Ernestina. Esse aqui é nosso afilhado, filho da Maria Conceição e do
Pedro Paulo. Lembra que eles casaram pouco antes de vocês?
- Alembro
sim. Como é que eles estão?
- Estão
fortes os dois. Ainda trabalhando. Teimosos igual umas mulas, mas gente de
primeira.
- Mas o
que fez oceis se perderem por essas bandas da Calavera?
- Viemos a
sua procura, Ernestina.
- Pra
mo’de que?
- Para
testemunhar a meu, aliás nosso favor num processo?
- Nada
demais, mulher. Um sujeito, de sobrenome Vargas, diz que é parente lá por parte
de meu bisavô Fulgêncio Vargas. Arrumou testemunha que foi criado na fazenda
comigo e meus irmãos. Quer contestar o testamento que fiz em favor do meu
afilhado aqui. Eu e a finada não tivemos filhos.
- Pode
contar comigo no que puder ser útil.
- Não sabe
o alívio que isso nos traz.
- Que eu
me lembre não tinha nenhum parente, além dos seus irmãos crescendo na fazenda.
O resto da meninada era tudo filho de peão.
Nisso
Tarcisio também chegou e sentaram-se todos para tomar mate e relembrar os
tempos antigos. Havia muitos anos que não se viam e tinham muita coisa para
contar. O único que ficou deslocado, apenas ouvindo foi Gaudêncio. O recém
chegado foi posto a par dos acontecimentos e também externou sua revolta com a
pretensão do atrevido. Se ao menos tivesse sido um parente chegado, um
trabalhador, mas pelo que ouvira havia malbaratado uma herança até considerável
deixada pelo pai. Se metera com mulheres de vida fácil, jogo clandestino,
carteado e coisas assim. Quando dera por si, não restara nada.
Pelo visto
o advogado que estava conduzindo o processo tinha em mente abocanhar uma bela
fatia desse bolo. Se o vivente perdera tudo, quase ficara sem a roupa do corpo,
morava agora de favor em casa de um antigo empregado seu. Deveriam ter se
mancomunado direitinho e pretendiam ter um ganho fácil com o processo.
Foram
convidados para almoçar e combinaram que no dia da audiência viriam buscar
Ernestina para depor. Tarcísio falou:
- Deixa
que nós aproveitamos para dar um passeio. Tenho um fusca e levo ela. Não carece
correr essa distância duas vezes ida e volta. Fazemos esse favor com muito
gosto.
- Vamos
ficar lhe devendo essa, amigo.
Depois do
almoço, descansaram um pouco e depois pegaram a estrada. Bem antes do anoitecer
chegaram e deram a boa notícia aos demais. Além do alívio de terem como provar
que o processo de contestação do tetamento era sem fundamento, havia a alegria
de saber que Ernestina e Tarcísio estavam bem. Viriam de carro próprio para a
audiência e isso seria muito bom. Gaudêncio constatou que estava tudo em ordem
com o gado, na ordenha e depois foi tomar banho para remover a poeira da
estrada. Tinha ainda que rumar para a aula. Não tinha intenção de faltar sem
necessidades. Nas provas feitas até aquele momento, tinha se saído muito bem.
Pretendia fechar o ano com um bom desempenho.
Chegou o
dia da audiência e ali estavam os envolvidos, bem como suas testemunhas. O
advogado do querelante ficou preocupado. Tinha recebido a informação de que o
senhor Joaquim não teria como apresentar testemunhas e ali havia duas pessoas
com idade de servirem como tal. Começou a temer ter embarcado em uma canoa
furada. Prometera uma porção de coisas, gastara por conta dos honorários
polpudos que esperava receber depois de ganhar a causa. Por outro lado, Joaquim
e suas testemunhas estavam tranquilos. O advogado instruira aos dois para não
se deixarem amedrontar e apenas falar a verdade em palavras simples. Não tinham
que dar explicações nem responder sobre coisas que aparentemente não teriam
nada que ver com o assunto. Poderiam servir para engambelar e armar ciladas.
O
assistente do juiz leu o teor da ação de contestação do testamento de Joaquim
Monteiro e favor de Gaudêncio das Neves, seguido do arrazoado das razões e
justificativas cabíveis, segundo o advogado do querelante.
Terminada
a leitura o juiz deu a palavra ao advogado que movia a ação, pedindo para
trazer suas testemunhas. Eram duas pessoas, marido e mulher. Completamente
desconhecidos dos demais, coisa que logo ficou claro e passou a ser cochichado
apenas entre eles. Não era bom dar motivos para qualquer questão extra. Os dois
afirmaram categoricamente terem vivido na fazenda Santa Maria quando os pais de
Joaquim eram vivos. Presenciaram a presença ali, na idade um pouco inferior à
de Joaquim, sendo criado pelos pais desse do menino agora homem já idoso, como
se filho fora. As palavras de ambos foram praticamente as mesmas.
- Senhor
advogado da parte contestada, quer fazer alguma pergunta?
- Quero
sim, meritíssimo.
- As
testemunhas são suas, doutor.
- Qualquer
um dos dois pode me dizer quais são os nomes desse senhor e dessa senhora
sentados aqui à minha direita?
- Ele se
chama Alfredo e ela é sua esposa Juvelina, - disse a mulher.
- São eles
sim, - falou o homem.
Não tenho
mais perguntas, meritíssimo.
- Agora é
sua vez de apresentar as testemunhas, doutor. -
Eu chamo o senhor Bráulio.
Bráulio
fez o juramento de dizer a verdade nada mais e sentou-se ereto:
- O senhor
conheceu esse casal no tempo em que viveu na fazenda Santa Maria?
- Não,
senhor.
- Ouviu o
nome que eles disseram ser o seu?
- Ouvi
sim, senhor. Eu não sou Alfredo e minha esposa é falelcida há alguns anos.
- Lembra
senhor Bráulio se havia na fazenda um menino, parente distante, criado pelos
pais de Joaquim como se fosse um filho?
- Não
tinha menino nenhum. Era só os filhos da família, sendo Joaquim o mais novo. Os
outros meninos e meninas eram tudo filho de peão da fazenda.
- Esse que
se diz parente distante e quase irmão do senhor Joaquim o senhor nunca viu?
- Vi não,
senhor.
-
Obrigado.
- O senhor
quer fazer alguma pergunta, doutor?
- Não
tenho perguntas.
- Tem
outra testemunha?
- Eu chamo
a senhora Ernestina.
Repetiu-se
os procedimentos, as perguntas foram praticamente as mesmas e também as
respostas. Ao final o advogado do querelante não tinha perguntas e já estava
juntando seus papéis para deixar o recinto. Sabia que a questão estava perdida
e os seus ganhos tinham ido por água a baixo.
Diante das
respostas das testemunhas de apresentadas por Joaquim, contrapondo-se
totalmente aos oponentes, comprovando com seus documentos o lugar de
nascimento, coisa que os outros não puderam fazer, o juiz deu a ação por
encerrada e ditou sua sentença a favor de Joaquim. Cabia ainda ao querelante
custear as despesas judiciais, o que seria outra questão. Não tinha de onde
tirar um níquel e ficava à mercê da justiça, sujeito inclusive a cumprir algum
tempo de cadeia.
Ao ver que
a situação estava perdida ele implorou ao advogado que lhe ajudadesse, mas não
adiantou. Tanto o jurista quanto as testemunhas trataram de dar “às de Vila
Diogo” e sumiram. Deixaram o infeliz ficou desesperado vendo o magistrado se
agigantar diante dele, dizendo que teria a incumbência de arcar com as custas.
Vendo que não havia de onde tirar o dinheiro, Joaquim se prontificou a cobrir
as custas da justiça e o seu advogado. Quanto ao outro que se virasse. Foi
então que se ficou sabendo a real origem da questão.
O dito
parente distante e o advogado haviam se envolvido em uma jogatina. Combinados
eles trapaceavam e ganharam bastante dinheiro. Mas, a ganância é péssima
conselheira, quiseram aumentar os ganhos além do aceitável e foram pilhados em
sua contravenção. Estavam os dois em maus lençóis e queriam arranjar dinheiro
fácil e rápido. Isso os levara a armar esse golpe. O advogado afirmara que eram
favas contadas e todos eles contavam com polpudas contas bancárias. Dinheiro à
vontade para gastar.
Diante
disso o juiz determinou ao assistente a abertura de um processo contra o
advogado e também seu cliente. Eles, na pior das hipóteses, passariam alguns
meses na cadeia para aprenderem a lição. Haviam ocupado desnecessariamente
funcionários, juiz, escrivães e demais membros do judiciário. Além disso tinham
perturbado a boa vivência de cidadãos honestos e trabalhadores. Isso merecia
uma punição exemplar. Joaquim até sugeriu ao juiz conceder ao miserável um
determinado montante para que fosse para algum lugar longe e fizesse algo por
si mesmo, mas foi desaconselhado disso. Seria abrir uma porta por onde ele
continuaria a tentar sempre conseguir mais e isso não seria justo de maneira
alguma.
Foram
dispensados pelo magistrado e foram para suas casas. Antes de mais nada,
Gaudêncio que aguardara do lado de fora, e Joaquim convidaram todos para
comparecerem no próximo domingo na fazenda Santa Maria. Fariam um churrasco
comemorativo da vitória. Ninguém mais perturbaria a boa ordem e paz na fazenda.
O convite foi aceito e confirmado. Um cheque no valor dos honorários e das
custas da máquina judicial, foi entregue ao advogado. Ele que destinasse a
parte de cada um. Quanto ao casal que testemunhara a favor da contestação nem
sinal se via, nem do advogado se via sequer o rasto. Sabiam que sua batata
estaria assando e trataram de por a maior distância possível entre eles e o fórum
onde ocorrera a audiência.
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