sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Mineiro sovina! - Capitulo XVII

Museu de Arte Moderna Belo Horizonte. 

MAM de São Paulo.





 O sucesso bate à porta.


            Coronel Onofre arregalou os olhos quando soube do sucesso de vendas dos quadros de sua filha. Somente os que faziam parte do acervo usado na casa não haviam sido vendidos. Ele estava com saudades deles. O lugar ficara vazio, parecia despido da beleza que as pinturas emprestavam ao ambiente. Queria saber quando eles voltariam ao seu lugar.
            Isabel prometeu pintar outros e colocar no lugar. Depois da primeira tournê de exposições eles voltariam ao seu lugar e ali ficariam. Haveria novos sendo pintados e fariam parte de futuras exposições. O valor total das vendas alcançava uma pequena fortuna. O lucro de uma boa colheita de café não seria suficiente para cobrir tudo.
            - I eu que num pensei que isso tivesse algum valor! Oia só minha veia! Nossa fia encheu os bolso de dinheiro de uma única pancada.
            - E tem mais por ganhar. Ela foi convidada para exposições em São Paulo, Rio de Janeiro e até nos estrangeiro. Maginou!
            - Mas ocê vai cum ela, num vai?
            - Quem vai cuidá de ocê meu veio?
            - Uma empregada dá conta disso.
            - Vamo vê isso adespois. Agora é hora de dar um abraço na nossa fia e valorizar o trabaio dela.
            - Ela podia ficar aqui, pintar seus quadro. Quanto tivesse bastante, fazia outra exposição e ganhava o seu. Num é suficiente?
            - Mas é um pecado enterrar ela aqui na fazenda! Ela tem esse tal de Talento. Nem sei dereito qui é isso.
            - Talento? Sei dereito qui é não. Mas que importa?
            Nisso Isabel veio, guiando seu automóvel novo, comprador com uma pequena parcela do dinheiro ganho com a venda de seus quadros. O promotor de justiça for a suficientemente inteligente. Oferecera um bom dinheiro por dois dos mais bonitos e ficara com eles. Lhe dera pessoalmente os parabens. Desejara muito sucesso.
            - Ele falou que espera me ver brilhar nos museus da Franca, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, e nem sei mais onde. Não vai sobrar tempo pra pintar mais os meus quadros.
            - Proveita pra mode descansa um tempo. Quando voltar torna pintar tudo novamente.
            - Meus dedos estão com cócegas por pegar num pincel e nos potes de tintas. Vestida assim cheia de luxo, parece que não sou eu. Quando estou com o avental todo sujo de tinta me sinto viva.
            - O tal José Silvério falou com ocê direito?
            - Sobre o quê pai?
            - Uai! Ele tinha pedido minha permissão pra mode namorar cocê e eu não dei licença. Agora ele me provou que é um advogado de sucesso, ganha um bom dinheiro e eu permiti.
            - E ocê num tinha falado nada disso, veio! Isso num si fais. As coisa não é mais como era de antigamente.
            - Pra mim é tudo igual. Mas eu já dei permissão e oceis pode namorá. Não quero saber de agarração nem coisa do tipo. Namoro longo também num serve.
            - Pai! O senhor está esquecendo que estamos no final do século XX! As coisas não são mais assim. Isso é coisa lá do seu tempo de juventude.
            - Agora tá feito e pronto. Ele nem reclamou. Aguentou firme e provou que é home de valor. Isso que é sujeito de fibra sô.
            - Que ele é um homem de valor nós sabemos. Veja o que ele fez com os meus quadros. Não tinha motive nenhum para fazer o que fez. Foi graças a ele que minha vida mudou. Hoje estou me tomando uma pintora famosa.
            - Eta ferro sô! Mais aqui em casa tudo continua nas mesmas. Não tem nada de fama.
            - Pode ficar sossegado. Não vamos lhe causar desgosto. O meu namorado é também um cavalheiro. Isso mesmo, um cavalheiro.
            - Quem diria! Chegou aqui, um devogadozinho meio sem sal nem açúcar e agora é Cavalheiro. Como as coisa mudaram!
            - Vou dar um passeio pela fazenda. Vai comigo pai?
            - Vai de jipe ou de cavalo?
            - Estou morrendo de vontade de motnar no meu baio. Ele também deve estar com saudades de mim.
            - Vou mandar selá os bicho. Enquanto isso ocê si apronta. Põe uma roupa de montaria.
            - Vamos junto mãe?
            - Vou cuidar das coisa pro jantar. Vai você com seu pai.
            Isabel foi para seu aposento vestir uma roupa adequada para montar, um par de botas e o pai saiu para ordenar a preparação das montarias. Quando saiu o rapaz das baias estava terminando de selar o baio de Isabel. Em minutos estavam pái e filha montados deixando os animais a passo, percorrendo os cafezais, nesse tempo verde escuros, os grãos em crescimento. Os galhos começavam a vergas sob o peso da carga. Se não houvesse contratempos teriam uma safra muito boa.
            Passaram pelo local da fonte onde ainda havia a cerca por ser refeita no lugar certo e os pés de café que haviam sido cortados. Logo seria tudo colocado nos devidos lugares. No final daquela semana se reuniriam diante do juiz para assinarem os documentos para acertar toda aquela pendenga com Jerônimo. Estava disposto a retirar a queixa contra o vizinho. Afinal nem sentia mais nada do tiro que levara e não carecia guardar ressentimentos por uma coisa que ficara no passado. Não sabia se o juiz iria concordar em aliviar o peso da justiça sobre o vizinho. Aí era uma questão que não estava em suas mãos.
            Enquanto percorriam as últimas etapas do passeio, o sol atingiu o horizonte. Sentia-se plenamente feliz. Tivera seus dias de glória durante a exposição e havia um bom tanto deles pela frente nos próximos meses. Estava com seu pai, passeando pelo cafezal, paisagem que fazia parte de sua vida e também da arte desde a infância. Haveria uma semana de descanso antes de iniciar a preparação da exposição no MAM – Museu de Arte Moderna. Depois já no mês de dezembro seria a vez do Rio de Janeiro. Estava em negociação uma excursão ao exterior. Projeto para o próximo ano quase inteiro. Haveria uma ou outra folga para vir ver a família entre as exposições nos diversos centros mundiais.
            Na quinta feira a tarde Coronel Onofre, José Silvério, Jerônimo e seu advogado encontraram-se diante do juiz para o acerto final das desavenças. Onofre havia retirado a queixa na delegacia, mas o juiz não aceitou arquivar o processo. Decidiu ali mesmo que os transgressores teriam uma pena atenuada, mas não ficariam impunes. Jerônimo vendo que o vizinho fizera o possível se conformou e aguardou a decisão final do magistrado. Talvez tivesse uma prisão domiciliar, sendo obrigado a se apresentar semanalmente ao delegado. Não poderia se ausentar da comarca. Isso seria ótimo, pois não o impediria de cuidar de sua propriedade. Queria, o quanto antes, pôr tudo em ordem.
            Foi assinado um documento final sobre a questão da divisa, os pagamentos da indenização, as demais condições fixadas judicialmente. Qualquer quebra de cláusula pactuada invalidaria o restante do acordo. Ao sairem da sala do juiz, encontraram-se com o promotor ele agradeceu a José pela informação. Adquirira dois quadros maravilhosos. Pelo visto em pouco tempo valeriam uma pequena fortuna. Sabia do convite recebido por Isabel para expor em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades.
            - O melhor de tudo é que ela foi convidada para expor na França, Itália, Alemnha, Londres, Nova York, Tóquio e outros lugares.
            - Minha nossa! Ficou famosa da noite para o dia. Parabens coronel pela filha talentosa.
            - Obrigado, doutor.
            - O senhorr deve estar cheio de orgulho. Não é qualquer um que pode dizer que sua filha é uma artista famosa. Ainda mais na pintura. Os verdadeiros talentos são um tanto raros.
            - O doutor aqui que vai ficar de cabeça quente!
            - Mas por quê, doutor José?
            - Ele é agora o namorado da minha fia.
            - Entendi. Vai chover de gala à volta dela. Se cuida amigo. Falando nisso, podemos jantar amanhã à noite?
            - Podemos, doutor.
            - Combinado. Nos encontramos na esquina da praça e vamos naquele restaurante em frente.
            - Às oito?
            - Está ótimo.
            Despediram-se e retornaram ao escritório. Ali Isabel estava a espera. Fora falar com o agente e na volta sentara para esperar pelo pai. Ela viera dirigindo em seu automóvel e voltariam para casa. Quando os dois chegaram, ela perguntou:
            - Tudo em ordem pai?
            - Tudo sim, fia. Está tudo resolvido. Vamo vive em paz com as vizinhança toda. O único que tava dando trabaio tomou jeito agora.
            - Que bom. Como está José?
            - Muito bem. Vocês poderiam ficar para jantar comigo. Fui convidado pelo promotor e vai ser hoje à noite.
            - Nós vamos para casa. A mãe vai ficar preocupada. Depois vocês devem ter seus assuntos a conversarem, principalmente depois daquele caso famoso.
            - Não vou insistitir. Teremos ocasião de nos encontrar em outros dias. Domingo vou almoçar em sua casa.
            - Tamo combinado, José. Nóis vamo ino.
            Deram adeus e em minutos estavam percorrendo sob um sol ainda forte a distância que os separava da fazenda. Ainda com o sol alto chegaram em casa e encotraram tudo na mais perfeita paz. Dona Maria Luisa apareceu na varanda e ficou esperando os dois desembarcarem e virem sentar-se à sombra. O ar ainda estava morno do sol da tarde. Trouxe-lhes um refresco que eles beberam com gosto e agradeceram. Depois de um tempo sob o sol forte, era coisa excelente sentar à sombra e beber um refresco bem geladinho. Bendita invenção de alguém a tal geladeira. Primeiro haviam tido uma à querosene, depois a gás e por fim, uma elétrica depois de a energia chegar à propriedade.
            O jantar foi cheio de conversar interessantes. José ficou sabendo de várias fofocas que corriam nos bastidores do forum. Nada grave, apenas pequenos mexericos, uma ou outra infidelidade conjugal de alguém e assim por diante. Habitualmente discrete, José ouviu tudo, sem intenção de fazer uso inadequado das informações que estava recebendo assim de maneira tão fácil. Estava sendo alvo de uma consideração elevada e era mister mostrare-se digno de tal distinção.
            Na hora de pagar a conta José fez menção de pagar a sua parte e o promotor não permitiu.
            - Você colega, é meu convidado hoje. Em outra ocasião a situação é diferente. Hoje é por minha conta.
            - Não haveria problema algum. O simples prazer de sua comapania vale o preço do jantar.
            - Guarde seu dinheiro, amigo.
            - Seja feita sua vontade.
            A conta foi paga e os dois caminharam algumas quadras até o local em que haviam deixado os automóveis. Era uma área bem movimentada e no momento não tinham encontrado vaga para estacionar. Caminharam e continuaram a conversa de antes. Quem primeiro alcançou seu carro foi José. Despediram-se e ele embarcou, ligou o motor e depois partiu. O promotor andou mais um pouco e fez o mesmo.
            Domingo perto da hora do almoço José chegou à fazenda e foi recebido por Isabel. Ele lhe deu um beijo carinhoso na face e entraram em casa abraçados. Assim chegaram diante da mãe e do pai sentados na sala naquele momento.
            - Mas formam um belo par! Não acha meu veio?
            - É sim. Uai! É minha fia. Tinha que dar nisso!
            - Mas quanta vaidade, pai.
            - Bom dia coronel. Bom dia dona Maria Luisa.
            - Dia, doutor.
            - Bom dia, - disse dona Maria Luisa.
            - Sente-se, meu bem. Quer um café ou um refresco?
            - Acho que um refresco vai bem. Está bem quente.
            - Nóis tava vendo a corrida de formula 1. As veis eu gosto de assistir.
            - Então o senhor é chegado em corrida de carros! Eu gosto, mas não sou muito viciado em assistir.
            - Tamem não. Mais as veis eu assisto quando dá no jeito.
            - Terminou?
            - Indagorinha memo. Acabaram de derramar o champagne.
            - Uma pena! Poderiam distribuir para o povo tomar um gole.
            - Mais isso faz parte do negócio. Dá o charme.
            - Isso lá é verdade. Há tanto tempo que isso acontece que ninguém ousaria questionar.
            - Tanta coisa que se perde por esse mundão veio que um litro ou dois de champagne não vai fazer diferença.
            - Me passou pela cabeça agora. Imaginou se fosse café quente?
            - Vixi Nossa Sinhora! Iam se queimar tudo!
            - Aí ninguém iria querer deramar uma gota.
            - Nem iria fazer toda aquela pressão na garrafa.
            - Isso mesmo.
            Maria Luisa foi pra cozinha supervisionar a cozinheira na preparação do almoço. Onofre convidou José e a filha a irem para a varanda. Ali o ar era mais fresco. No verão ele passava maior parte do dia ali fora. Sentaram-se em confortáveis cadeiras de vime e realmente se sentiram bem melhor ali fora. Tomaram mais um copo de refresco enquanto esperavam o almoço. Logo mais a dona da casa chegou até a porta e falou:
            - Vamos para a mesa que a comida tá servida.
            - Já vamo, veia.
            - Dia desses vou te ensiná quem é veia!
            - Modo carinhoso di tratá ocê, muié.
            - Tá bom, veio.
            - Ela chama eu de veio, eu chamo ela de veia. Tamo quite, não tamo?
            - Esses dois não tomam jeito. É essa eterna implicância um com o outro.
            - Mas eles se amam, pelo que sei.
            - Andem pra mesa de uma veis.
            Levantaram-se e foram para a sala de refeições. O almoço estava sobre a mesa esperando pelos comensais. Almoçaram e depois ficaram conversando na varanda. À tardinha, antes da volta para a cidade, os namorados foram até a pequena vila próxima para tomarem um sorvete. Voltaram já perto do escurecer. José despediu-se e voltou para cidade. Tinha compromissos cedo e se ficasse por ali para voltar na manhã, era provável que se atrasaria. Voltou e no meio da semana era hora de Isabel viajar para Belo Horizonte. Naquele final de semana seria inaugurada a exposição na capital. Os quadros haviam sido embalados cuidadosamente e despachados por trem, com um bom seguro contra qualquer eventualidade. Eram agora um produto precioso, além de perecível.
            O agente estava na capital desde a semana anterior tratando dos detalhes da instalação. Isabel chegou quinta feira à tarde e se hospedou no hotel reservado para ela. No sábado havia uma aglomeração de fotógrafos, jornalistas, cinegrafistas, todos sedentos de imagens e uma palavra da mais nova celebridade do mundo da pintura. Isabel, acompanhada de José, enfrentou com galhardia a maratona. Os flashes espoucavam de todos os lados, microfones eram colocados diante de seus lábios em busca do registro de alguma palavra dita.
            Um esquema de segurança foi acionado para proteger a artista. Uma multidão de populares ensandecida queria entrar no recindo. Na primeira noite seria apenas para os convidados de honra. Os agentes de segurança precisaram usar toda sua força para conter a massa. Após a abertura os convidados entraram e as portas foram fechadas, ficando um cinturão de segurança do lado de fora. Ouviam-se de todo lado exclamações de admiração diante da perfeição dos quadros. Os lamentos foram constantes diante da informação de que estavam todos vendidos. Seria preciso esperar a artista produzir mais obras para ser possível adquirir alguma coisa. Ou então oferecer um valor mais alto que o pago pelos primeiros compradores. Talvez houvesse quem aceitasse vender.
            Foram diversas as ofertas de somas elevadas por algumas obras. O comprador inicial seria informado da oferta e se aceitasse deveria se entender com o pretendente. Dessa vez os ingressos tinham um valor condizente com a fama já conquistada. O número posto à venda se esgotava rapidamente tão logo eram abertas as bilheterias. A semana chegou ao final e ficou uma porção de gente sem ter chance de ver as obras. Tiveram que se contentar com um filme feito pelos donos da galeria e o entregaram ao canal de TV para exibir num programa cultural.
            Ao final da semana o valor arrecadado em ingressos era bastante alto. As despesas estavam cobertas e sobrara um bom lucro. No começo de dezembro, dali a duas semanas, seria aberta a exposição no MAM em São Paulo. Foram dias de atividade quase ininterrupta. Isabel chegou em casa e foi para o atelier. Queria pintar alguma coisa para levar junto e poder oferecer a alguém que quisesse muito comprar. Antes de viajarem para a nova exposição, ficaram sabendo que um dos primeiros compradores vender aos seus por um preço igual ao triplo do que havia pago a um industrial de Belo Horizonte. Ele teria que concordar com o transporte dos mesmos para São Paulo e depois Rio de Janeiro.
            Isabel conseguiu pintar em tempo recorde dois belíssimos quadros. Parecia que a energia represada em suas mãos e seu íntimo explodira em criatividade. Além dos dois, levou um terceiro iniciado para terminar durante a exposição. Ficaria em um canto pintando, permitindo aos visitantes verem ela em ação. Ao término o quadro seria vendido a quem oferecesse o lance mais alto. Repetiu-se o tumulto na portaria do Museu na noite da inauguração da exposição. Os dois novos trabalhos não ficaram sem dono por mais de algumas horas. Houve diversas ofertas pore eles e uma pequena multidão ficava assistindo a artista pintar.
            Fotografias eram tiradas o tempo todo, chegando a perturbar a serenidade da artista. Aos poucos se habituou e continuous seu trabalho. Em alguns momentos ela fazia um pequeno interval e vinha conversar. Quem tinha a sorte de trocar algumas palavras com ela, ficava realizado. Ganhava um autógrafdo no bilhete do ingresso, em caderninhos de autógrafos e um pedaço de papel qualquer. Ao final, uma pilha de envelopes se fez ao lado do quadro que ainda não estava pronto. Os pretendentes faziam suas ofertas, querendo garantir o direito de serem os donos da obra que todos estavam assistindo ser pintada.
            Ver um pintor em ação durante a exposição era algo, se não inédito, porém bastante incomum. Dessa forma a fama da pintora se espalhou por todo país e também pelos diferentes cantos do mundo. Jornalistas vieram do exterior para ver e mandavam por telex suas fotografias e textos para publicar nos jornais e revistas. Todos queriam saber quando os trabalhos seriam levados para Europa, Estados Unidos. Já estava definida a viagem. Começariam em fevereiro pelos Estados Unidos, depois iriam para a França, Londres, Milão, Roma, Bohn e finalmente Tóquio. Com isso transcorreria quase o ano inteiro. Cada evento teria a duração de duas semanas e mesmo três.
            Isabel viajou sózinha, prometendo vir passar alguns dias no Brasil depois das exposições de Paris e Londres. Antes de ir para o Japão também haveria tempo de fazer uma pequena visita. Retornaria definitivamente quando já fosse novembro. Levou consigo seus apetrechos de trabalho para aproveitar a grande variedade de imagens que teria diante dos olhos e assim encontrar inspiração para pintar mais alguma coisa. Dessa forma se manteria ocupada. O que passou a ser integrante dos eventos era sua demostração de seu trabalho durante a pintura. Em todos os lugares havia quem quisesse ver o quadro surgindo aos poucos das sussecivas pinceladas.
            O ano passou, somando um evento ao outro. Convites para entrevistas, programas de televisão, palestras em escolas de artes e museus foram uma constante. Em todas as ocasiões sua conta bancária saia um pouco mais gorda. Ela nem mais se importava com os valores. Era tanto dinheiro que ela nem saberia dizer ao certo quanto foi. Dessa forma chegou novembro e finalmente os quadros, inclusive os pintados no decurso dos eventos, estavam com ela. Seriam agora enviados aos respectivos adquirentes em segurança.
            Os pertencentes à casa, após mais de um ano for a de seu lugar, voltaram a ocupar suas posições. A casa voltou a ser o que era. Quem não era mais a mesma era Isabel. Vivera tantas emoções naquele ano que não saberia dizer o que for a mais intense. Abraçou os pais ao chegar e não queria desgrudar deles. José recebera sua cota ao desembarcar do avião em Belo Horizonte. Ele for a recebê-la no aeroporto e a levara de carro para Sete Lagoas e depois para a casa dos pais. A primeira coisa que José providenciou foi um par de alianças. Queria oficializar a relação deles, antes que ela iniciasse nova série de viagens.
            - Por enquanto quero ficar bem quieta aqui no meu canto. Quero pintar e pintar até não querer mais.
            - Se arrependimento matasse eu estaria morto.
            - Por quê, meu bem?
            - Eu que fiz a besteira de colocar você nessa vida de gente famosa. Levei a pior. Ficou famosa e eu fico aqui esperando você voltar.
            - Não vai me dizer que está com ciumes!
            - Um pouco, mas a saudade é maior.
            - Dá logo aqui essas alianças. Vamos ficar noivos para você não começar a ter um chilique.
            - Também não é para tanto. Mas não é fácil ficar aqui lidando com bandido, assassin e ladrão, enquanto você viaja pelo mundo.
            Isabel chegou perto e recebeu sua aliança. Depois colocou a outra na mão dele. Um beijo caloroso na boca selou aquele momento. Onofre pigarreou, avisando que ali não era momento para demonstrações desse tipo.
            - Ih pai! Precisa ver o que eu vi na Europa, no Japão e por esse mundão de Deus.
            - Nós tamo no Brasil, em Minas Gerais.

            Isso vai dar briga. Vamos sentar um pouco na varanda. Hoje eu não volto para o escritório. Os processos que aguardem para amanhã e depois. 



Museu de Belo Horizonte.


Imagem do museu do Louvre.


Anjo justiceiro.




ANJO JUSTICEIRO

Arte de Vlaho Bukovac

O que mais adorava na biblioteca de minha escola eram as fichas ao final do livro.

Tinha que assinar o nome enquanto a bibliotecária colocava a data de devolução. A leitura costumava vencer em sete dias.

Até hoje, adulto e independente, levo sete dias para ler um livro, mesmo que seja meu, com medo de pagar multa na minha escola. Internalizei o hábito. Não me desvencilhei do medo de atrasar.

Admirava o capricho do canto de leitura. Todos os livros mostravam a história dos seus leitores: quem leu, o período de quem se interessou por aquela obra. Com o registro dos hóspedes colado com um envelope na contracapa, pelo lado de dentro.

Poderia descobrir aqueles colegas que partilhavam de iguais afinidades, igual paixão, igual inclinação pelos enredos de amor.

Só que me entristecia quando puxava um volume qualquer da prateleira da Imperatriz Leopoldina e ninguém ainda o havia retirado. Ninguém!

Um livro que poderia estar havia anos no acervo e jamais fora procurado, jamais fora levado para casa. A ficha vazia. O coração vazio de tinta. Os andares das linhas em branco. Como um hotel de letras imenso, falido; quartos de histórias vagos e fechados.

Como nenhum aluno se interessou? Como nenhum aluno sequer o pegou por engano?

O livro sem pai nem mãe, no orfanato das horas, imaculado, virgem, sem nenhum farelo de pão entre as páginas, sem nenhuma digital, sem nenhuma marcação de lápis.

O livro longe de uma família. Longe de um braço. Longe de um cuidado. Longe do cheiro achocolatado da térmica das mochilas.

Tão triste. Eu pegava para ler de propósito. Só para pôr um nome na fichinha e ele não morrer sozinho.

Eu me sentia um anjo justiceiro. Não queria deixar nenhum livro não lido. Nenhum livro parado, sem ter sido amado ou odiado.

Não lia o que gostava, lia para aprender a gostar.

A bibliotecária Noeli já conhecia minha mania, meu projeto de salvação.

Aparecia no intervalo do recreio e pedia sua força:

– Me ajuda a encontrar um livro que nunca foi lido?

Ela deixava sua mesa, não questionava meu hábito estranho e se levantava para catar comigo nas estantes uma capa ainda intacta, ainda inexplorada pelas turmas.

Podia ser romance, poesia, crônica, ensaio, adulto, infantil, de menino, de menina, de bicho, de biologia, de física. Não me assustava com o tema.

O que desejava era registrar meu nome na aba e acabar com a maldição de pó e abandono.

Tornei-me leitor puramente por compaixão, somente para estrear livros na biblioteca.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  12/10/2014 Edição N°17950

A ouvinte fatal!





COMO VOCÊ FALA

Arte de Francis Picabia

Mulher é uma ouvinte fatal.

Ela mantém uma biblioteca de sons, um arquivo de escalas musicais em seus ouvidos.

Nasceu com um detector de mentiras nos tímpanos.

Você pode dizer as palavras certas, mas ainda será pouco.

Você pode escolher os termos mais apropriados, a ordem mais harmoniosa, as frases mais cristalinas, e ainda será pouco.

Você pode decorar o discurso, mas ainda será pouco.

Não significa que terá o respeito dela. Não assegura a compreensão dela.

Ela é capaz de implicar com você.

O homem não entende que não basta falar para a mulher o que ela quer, tem que falar do jeito que ela quer.

Quantas vezes você, para superar a insensibilidade e o laconismo do macho, finalmente expressou o que ela ansiava ouvir e ela não ficou satisfeita?

Esperava a libertação, o elogio, a recompensa e aguentará uma nova e inesperada crítica da esposa:

– Não foi o que você disse, mas como disse.

Você suspira amém, e ela entende que está sendo cínico.

Você concorda com os argumentos dela, e ela entende que somente deseja fugir da briga.

Você pede desculpa, e ela entende que é da boca para fora.

Você concorda, e ela entende que está resmungando.

O “como” feminino é mais importante do que o conteúdo da fala.

O “como” é a própria fala.

Ela valoriza o sentimento da pronúncia. A pronúncia é a porta do paraíso ou a do inferno.

Você poderá se declarar com “Eu te amo”, e ela insistir em problematizar.

– Ai, que eu te amo sem entusiasmo, sem vontade, eu não quero ser amada assim.

Será obrigado a fazer um teste vocal do “eu te amo” nesse momento. Um gargarejo do “eu te amo” até convencê-la.

Quando acertar o timbre ideal, a equalização apropriada, ela, então, num gesto de absoluto desdém, vai encontrar motivo para revidar:

– Agora não adianta, não foi espontâneo.

Está enrascado. Sempre estará enrascado mesmo empregando os diálogos perfeitos.

Além de compositor, o homem precisa ser intérprete, saber cantar, assumir o microfone da confissão.

Não basta acertar a letra, é necessário transmitir a emoção adequada pela voz.

Terá que ser um Caetano Veloso da discussão de relacionamento, um Chico Buarque do corredor de casa, um Ney Matogrosso da cozinha.

Vá treinando no chuveiro.

Ser marido é uma carreira difícil e de público muito exigente e sensível.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 14/10/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17952

Deus te Abençoe meu filho!


TEM A BÊNÇÃO, MEU FILHO!

Arte de Rodolfo Morales

Ele pode ser um publicitário famoso, colecionar vários prêmios no currículo, enfileirar leões de Cannes na estante, conduzir uma agência, mas se não tem o reconhecimento dos pais nunca estará satisfeito. Ele pode ser um arquiteto requisitado, ser chamado de Niemeyer, ganhar convites para idealizar museus no mundo inteiro, mas se não tem o reconhecimento dos pais nunca estará satisfeito.

Em toda profissão, nunca estaremos satisfeitos sem receber o apoio paterno e materno.

É uma sina depender eternamente da atenção dos pais, mas não existe jeito de escapar.

Nenhum filho estará resolvido emocionalmente sem o carinho dos pais.

O sucesso, os troféus, a fama não são nada se não há um pai ou uma mãe para se orgulhar daquilo que a gente faz.

O que deve sofrer um bailarino que nunca teve seus pais na plateia. O que deve sofrer um artista plástico que nunca contou com seus pais numa exposição. O que deve sofrer um escritor que nunca foi folheado pelos seus pais.

Não haverá aplauso que sacie o orfanato do coração de um filho. Não haverá láurea e diploma que cale as paredes de uma casa onde os pais desprezam a vocação do filho.

É preferível ter um auditório vazio com os pais sentados na primeira fila a um auditório lotado sem o rosto daqueles que nos conceberam.

Qualquer filho que me lê concordará comigo.

Impossível amadurecer o nosso sentimento sobre o assunto, é imutável. Não é problema para ser levado para terapia, é angústia incurável. Queremos que eles sempre estejam presentes, concordando ou não. Pois os pais foram a nossa primeira ovação, nossos primeiros cumprimentos, nossa primeira torcida, formam o nosso início. Não tem como excluí-los de nosso final.

Não há maior carência do que adotar uma trajetória profissional com o desdém dos nossos cuidadores, assumir um trajeto com o despeito familiar.

Ainda que seja consagrado, o profissional será amargurado. Doloroso enfrentar o boicote e se virar sozinho.

Sem a compreensão dos pais, ele jamais vai confiar suficientemente em si, jamais será receptivo à felicidade, jamais será agradecido ao que acumulou com seu esforço. Faltará sempre uma mão antiga e conhecida no ombro da glória.

Nenhum filho se perdoará diante do desprezo dos pais. Carregará a culpa insolúvel de ter feito algo errado, de estar cometendo um crime, de não retribuir a educação que recebeu, de desrespeitar os sonhos filiais.

O que um filho deseja é o amparo do ventre bem depois do ventre, a paz que vem da confiança, a bênção na testa quando sair de casa.

Não suportará decepcionar seus pais. Não aguentará frustrá-los em silêncio. Por mais que se arme um exército invencível de amigos, não se vence a oposição do sangue.

A desfeita é realmente incompreensível: aqueles mesmos pais corujas que não deixavam de comparecer nas exibições da creche e da escola, agora incapazes de abrir os braços para um aperto simbólico; aqueles mesmos pais babões que retratavam a infância com fotos e vídeos, agora incapazes de abrir a boca para um simples elogio; aqueles mesmos pais bajuladores que enchiam o pulmão de alegria para falar o nosso nome, agora incapazes de suspirar de saudade.

É uma dor sem idade. Uma ferida sem consolo.

E como existem pais que jogam seus filhos crescidos para a indiferença, somente porque discordam da opção profissional deles. Advogados que não aceitam filhos cabeleireiros, médicos que não aceitam filhos malabaristas, engenheiros que não aceitam filhos DJs. Como se houvesse uma função maior ou uma menor, uma carteira profissional melhor do que a outra.

Pais que erram a medida da força. Ao procurar demonstrar firmeza, desandam em intolerância.

Pais que consideram que o filho desperdiçou sua vida sem ao menos entender o que ele é e o que se tornou. Pais que julgam um disparate a ausência de estabilidade, que lamentam a pouca ambição do herdeiro, que diz que ele foi preguiçoso e decidiu pelo caminho mais fácil.

Pais que abdicam de décadas ao lado do filho só para provar que têm razão, só para dizer ao final que avisaram do fracasso.

Pais que torcem para que tudo falhe e sua criança grande retorne ao lar, humilhada e constrangida, e aprenda assim a dura lição.

A frieza e o distanciamento não são lições, apenas geram preconceito e arrogância.

A única lição que funciona é o amor, e sua aceitação reverenciada da diferença, e seu colo inadiável da ternura.

Se você é pai, se você é mãe, reconheça a profissão do seu filho antes que seja tarde. Ele está ansiosamente esperando.


  



Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 21/10/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17957







Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 21/10/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17957