terça-feira, 30 de setembro de 2014

Mineiro sovina! - Capítulo X






Atentado contra cliente.


A indiferença com que fora tratado por Onofre diante de uma porção de testemunhas, à porta da agência de Banco do Brasil, deixou Jerônimo deveras injuriado. Esperara uma reação violenta, palavras ásperas, que lhe ensejassem eventualmente motive para chamar em seu socorro os capangas espalhados nas redondezas. Um Onofre, aparentemente inofensivo, frustrara seu propósito. Voltou para casa remoendo a humilhação, planejando vingança. Não queria engolir esse angú com farinha. Quando estava próximo de casa, um dos capangas sugeriu que fizessem uma tocaia ao vizinho. Nem que fosse apenas para dar-lhe um susto, deixar as marcas de balas em seu couro.
Jerônimo não respondeu de imediato. Não convinha envolver os seus empregados numa ação dessa natureza. Mesmo os mais novos contratados haviam sido vistos com ele. Se fossem pegos, acabariam denunciando o mandante e não tinha necesidade alguma de responder a outro processo. Um só já era suficiente. Mas a ideia de dar um susto no coronelote lhe agradou. Lembrou de uma dupla de “justiceiros” residente na vila próxima. Pouco depois de haver chegado no meio da tarde, chamou dois outros empregados e ordenou que o acompanhassem. Os que havia levado para a cidade estavam ausentes, cuidando de outros afazeres. Embarcou em sua caminhonete, tendo os cois ao seu lado, foi até a residência da dupla.
Encontrou os dois numa birosca da esquina, tomando uma cachacinha. Ordenou aos que o acompanhavam permanecerem na caminhonete, até receberem alguma ordem. Sentou-se numa mesa do canto, pediu uma garrafa de caninha da boa, pondo-se a bebericar um “martelinho”. Num momento fez um sinal discrete a um dos dois que for a procurar e sem demor eles se aproximaram. Convidou-os a sentar e ofereceu um trago. O dono do estabelecimento trouxe os copos e os encheu. Depois deixou-os sozinhos, pois tinham assunto sério a tratar.
Sem muitos rodeios falou o que desejava que fizessem. Forneceu os detalhes da vítima, seus hábitos, lugares onde costumava ir. Costumeiramene andava desacompanhado o que deveria tornar o trabalho mais fácil de ser executado. Diante do exposto, o trabalho foi considerado fácil e o preço acertado. Jerônimo fez o pagamento de metade adiantado. A outra metade pagaria com o serviço concluido. A finalidade era apenas dar um susto no coronel. Poderiam lhe dar um tiro, mas não letal. De preferência que lhe quebrasse uma perna, talvez o joelho. Uma boa surra também, mas havia o risco de eles serem reconhecidos e assim complicassem o caso. Melhor mesmo um tiro, aparentemente casual, preferencialmente sem se deixare ver.
Se quisessem disparar bastantes vezes para dar a impressão de um grande tiroteio, poderiam ficar à vontade. Habitualmente o coronel saia todas as sextas feiras para levar a mulher e a filha no comércio da cidade fazer as compras necessárias. Sugeriu que fizessem o serviço nessa ocasião.
- Pode ficar sossegado chefe. Vamos dar um susto no seu “amigo” de que ele não vai esquecer tão cedo.
- Espero o resultado.
Levantou, pagou a cachaça, deixando os dois com o que sobrara. A garrafa ia pela metade, permitindo prever que em pouco tempo não sobraria nada. Foi até a porta e chamou os dois empregados. Poderiam tomar um trago, antes de voltar para casa. Deixá-los ali, sem terem direito a um trago sequer, os faria ficarem frustrados. Precisaria de todos os homens ao seu lado, sem insatisfação alguma. Depois de tomarem uma segunda dose, a noite começara a cair, eles embarcaram no veículo empreendendo a viagem de retorno. Apesar da curiosidade, os dois não indagaram o que o patrão viera fazer. Quanto menos soubessem, melhor seria, em caso de alguma coisa em andamento sair errada. Levavam a sério o ditado “o que o ouvido não ouve, a boca não fala”.
Estavam na terça feira e, a partir dessa data, Jerônimo ficou torcendo para chegar sexta-feira. Disfarçou como pode sua ansiedade para não permitir a ninguém desconfiar de suas inenções. O mesmo capanga que sugerira, tornou a perguntar e els lhe falou:
- E vosmece pensa que vou arrumar encrenca, logo agora que está chegando o dia da audiência, sobre a questão da divisa? Deixa passar que depois damo um susto no velho.
- Pode contar c’a gente, para o que for preciso.
- É bom saber, Chico.
Nessa expectativa os dias passaram. Os “justiceiros” contratados vistoriaram a fazenda de Onofre, chegaram até próximo da casa, escondidos no meio do cafezal, observaram atentamente, imaginando um modo de fazer o serviço encomendado. Ali nas proximidades da casa seria perigoso, pois teriam que percorrer boa distância até a estrada. Observaram que o coronel saia para percorrer sua propriedade, mas sempre acompanhado de pelo menos três dos empregados. Isso não estava de acordo com a informação do contratante. Teriam que buscar um meio de chegar perto, durante a ida a cidade na sexta-feira.
Pontualmente às 8h30min do dia marcado, o veículo de Onofre saiu pela alameda de acesso, precedido por um jipe com três empregados e mais outro fechava o cortejo. Tudo estava ficando mais complicado do que o previsto. Pelo visto alguém alertara a pretensa vítima, fazendo-a tomar precauções com que não contavam. Mesmo assim seguiram de longe em uma caminhonete, suficientemente possante para permitir uma evasão rápida em caso de necessidade. Carregavam carabinas caliber 38, podendo assim atirar de maior distância. O pequeno comboio parou diante de um supermercado. Dois dos empregados acompanharam a família ao interior e os outros ficaram esperando ao lado dos jipes. Seus olhos estavam sempre atentos aos arredores e à porta do estabelecimento.
Os dois ficaram frustrados. Não seria ali que poderiam realizar o serviço. Precisariam encontrar um lugar mais propício. Uma tentativa de cumprir o contrato ali, no estacionamento do supermercado, poriam em risco outras pessoas e não tencionavam atingir mais ninguém. Apenas o coronel era seu alvo. Se ao menos o contratante tivesse falado que poderiam atingir qualquer membro da família, seria mais fácil. Mas fora taxativo nesse particular.
Após uma hora no interior do mercado, a família saiu, um funcionário levou as compras até a caminhonete do coronel. Este deu uma pequena gorjeta ao rapaz e embarcou. Dali foram até o centro, parando diante de uma loja de roupas. Provavelmente tinham intenção de adquirir alguma roupa para as damas. Novamente tudo se repetiu. Houve apenas um momento em que teriam podido atingir o alvo, mas estavam em movimento e perderam a oportunidade.
Perto da hora do almoço o grupo iniciou o caminho de volta. Eles decidiram se adiantar até uma curva que tinha ao lado um penhasco bem elevado. Dali tentariam usar suas carabinas para cumprir o combinado. Chegaram, esconderam a caminhonete em local suficientemente distante e seguiram até o local. Tinham que ser rápidos pois logo o grupo estaria passando por ali. Chegaram, escolheram um bom lugar para se ocultar, que oferecesse boa visibilidade da estrada. Dariam alguns tiros, tendo a preocupação de atingir o coronel e mais ninguém. Isso feito, retornariam depressa ao local do veículo e empreenderiam fuga. Havia uma estrada secundária que permitia chegar à vila dando uma boa volta. Isso os tiraria da cena do ataque.
Não tardou e os veículos apontaram ao longe. Pouco antes da curva escolhida, uma pequena reta permitia escolher o momento certo de atirar. Depois de atingir o alvo, os demais tiros poderiam atingir as rodas, o radiador e mesmo o chão. Não importava onde pegassem, queriam fazer bastante barulho. Quando tiveram o alvo na mira, atiraram e repetiram a operação diversas vezes. Assim como havia começado o tiroteio cessou e os dois sairam rapidamente do local.
Na estrada, o coronel havia sido atingido na coxa direita, pois vinha sentado ao volante. O projétil atravessou o parabrisas estilhaçando-o e ferindo o coronel. Os demais projéteis atingiram os pneus, o radiador, o capô e um vidro traseiro. Mesmo ferido Onofre conseguiu parar o veículo. Vinha reduzindo a velocidade devido à proximidade da curva, o que facilitou a parade, evitando uma possível colisão ou a saída da estrada. Os empregados saltaram e se protegeram atrás dos veículos, pondo-se a revidar, mas os atacantes já haviam ido embora. Verificaram o estado dos veículos, constatando que apenas um dos jipes tivera o radiador perfurado, vazando o líquido refrigerador.
Um dos empregados assumiu o volante do carro do coronel e este foi levado rapidamente ao hospital na cidade, depois de davem meia volta. Enquanto ocorria o atendimento do ferido, o chefe dos empregados foi até a delegacia de polícia. Não tardou e uma equipe de agentes se fez presente, tomando os depoimentos prévios. Depois o grupo todo foi até a delegacia formalizar a queixa. O delegado determinou que uma equipe de policiais seguisse até o local do ataque, onde o jipe danificado ficara aos cuidados de dois dos empregados. Dois empregados iam com eles, enquanto os outros dois levaram a familia para um hotel. O veículo precisava ter o parabrisas substituido, o que demoraria algum tempo. O ferido descansaria até o momento em que pudesse retornar para casa.  
Não existia em princípio nenhuma pista, apenas o fato de os tiros terem partido do alto do penhasco. Os policiais subiram por um trilho existente e encontraram as cápsulas dos tiros, jogadas no local. Os agressores não haviam tomado a precaução de coletar esses vestígios, que serviriam de provas em eventuais perícias de armas encontradas. Encontraram os sinais por onde o(s) agressor(es) havia(m) fugido e seguiram até o lugar em que o carro ficara. Uma marca de pneus patinando no chão seco mostrava a pressa com que haviam saído dali. Um deles portava uma camera fotográfica e tirou umas fotos dos rastos deixados na beira da estrada. O tipo de pneu serviria para incriminar quem praticara o atentado.
Depois de coletar todas as informações, suspeitas e indícios os policiais retornaram para a delegacia. Os empregados usaram o segundo jipe para rebocar o outro até a cidade. Precisavam trocar o radiador, pois o outro ficaram bastante avariado. Quando o sol estava perto do horizonte, o grupo ainda receoso, iniciou o retorno para casa. Por precaução um carro da polícia os precedeu até ao patio da fazenda. Chegaram sem novidade e a equipe de policiais retornou à cidade. Tinham em mãos um caso típico de uma ação de vingança ou execução. Os dados para elucidar o crime eram vagos. O indicio mais forte, era a desconfiança em relação ao vizinho. Mas isso não permitia nenhuma conclusão. Antes de retornar, o mais antigo dos agentes sugeriu que passassem pela fazenda do vizinho. Certamente ele não estaria esperando uma visita a essa hora.
Foram até lá e ao chegarem encontraram uma caminhonete parada diante da casa principal da propriedade. O policial das fotografias passou perto do veículo estacionado e teve a curiosidade de focalizar sua lantern nos pneus. Sua surpresa foi grande ao ver a forma dos pneus. Conferia com a marca vista na estrada. Chamou o chefe e lhe mostrou sua observação. Olharam detidamente e depois chegaram perto da casa. Nesse momento dois homens saiam e se encaminhavam para a caminhonete. O policial teve um lamapejo e falou:
- Voces dois podem me responder uma pergunta?
- Sim senhor! – falou o mais alto.
- Onde vocês estavam hoje por volta do meio dia?
- Nós estávamos em casa, na Vila Santa Rita. Por quê?
- Por acaso não estavam na estrada, naquela curva perto de Sete Lagoas, onde tem um penhasco?
- Nem sei onde fica essa curva, doutor.
- A gente nunca vai a Sete Lagoas. Trabalhamos na vila mesmo.
- Me mostre os documentos pessoais e do carro.
- Mas que é isso agora?
- Se não tem o que temer, por que não pode mostrar?
- Isso é abuso. Nós não fizemos nada.
- Apenas uma verificação de rotina, amigo.
Os outros agentes ficaram estratégicamente posicionados. Jerônimo chegara à varanda e observava a cena. Quando viu os homens apresentarem os documentos, gelou. Se os policiais ligassem os dois ao atentado, estaria perdido. Pensou em algo a fazer e optou por retroceder para o interior da casa. Aparentemente não havia sido visto. Ficaria espiando pela fresta da janela para ver o que aconteceria. Os documentos foram observados, anotados os nomes e número dos mesmos. Foi quando chegou o momento de examinar os documentos do veículo que ficou evidente que se tratava dos agressores. O documento constava em nome de um conhecido infrator, frequentemente envolvido em atos de desordem e violência.
- Por quê estão com esse carro? Trabalham para o dono?
- Nós pegamos emprestado.
- Muito conveniente isso. Esse nome é bem conhecido nosso. Estamos invetigando um crime e esse carro tem o mesmo tipo de pneu das marcas encontradas perto do lugar. Para piorar estão no patio de uma pessoa suspeita.  
- Não temo nada a ver com essa encrenca. Viemos tratar de um serviço com o dono da fazenda.
- E que serviço é esse? Não seria fazer uma tocaia ao Coronel Onofre?
Ao ouvir isso um deles olhou significativamente para o outro. Vendo o olhar, o agente deu voz de prisão aos dois e ordenou aos auxiliares que os algemassem. Foram colocados no banco traseiro do veículo sob a guarda dos dois policiais. O agente que comandava foi até a varanda, chamando:
- Ó de casa!
Jerônimo chegou à porta e perguntou:
- O que se passa? O senhor é de onde?
Mostrando a sua credencial, falou:
- Sou o detective Arthur da Silva e estou procurando suspeitos de um atentado contra o coronel Onofre, seu vizinho. Esses dois homens que sairam agora mesmo de sua casa estão sendo levados à delegacia para interrogatório. O senhor tem alguma coisa a ver com o caso?
- Mas de onde lhe vem essa idéia, policial?
- Eu apenas estou perguntando. O carro que os dois estão usando é de um bandido conhecido, tem pneus iguais às marcas deixadas na estrada perto do lugar do atentado e demonstraram sinais de medo quando os questionei agora pouco.
- Eles vieram aqui em busca de trabalho e eu não estou precisando.
- Fique de sobre-aviso, senhor Jerônimo. O senhor é suspeito de ser o mandante do atentado. Dependendo do resultado das investigações, vamos lhe chamar e é bom não se ausentar nas próximas semanas.
- Essa agora! Tenho minhas pinimbas com o vizinho, mas não sou bandido. Tenho nada com isso.
- Vamos averiguar. Se não tiver nada a ver mesmo, nada tem a temer. Boa noite, senhor Jerônimo.
Desceu da varanda e foi até o carro, ordenando a partida. Um dos policiais dirigiu a caminhonete que estava em mãos dos detidos. Foram direto para a delegacia, sem se demorarem. Levavam a suspeita de que o fazendeiro faria alguma coisa para resgatar os dois. O comandante do grupo estava convicto da culpabilidade dos dois. Todavia chegaram à delegacia sem problemas. Mal sabiam que pouco atrás havia chegado o carro de Jerônimo, que se dirigiu direto à casa do advogado. Expôs rapidamente o caso, omitindo a questão de seu envolviemnto. Pediu que fosse impetrado um habeas corpus o mais rápido possível. Ficou sabendo que dificilmente esse mandado seria conseguido antes do almoço de sábado. O juiz de plantão para atender essas emergências era o mesmo encarregado da ação de Onofre contra Jerônimo. Era capaz de associar uma coisa e outra e a situação se complicaria.
- Eu falei ao senhor! Não tome nenhuma attitude precipitada! Mas parece que quer saber mais do que eu.
- Não tenho nada a ver com isso. São meus conhecidos e vim para ajudar. Eles são inocentes.
- Tem certeza disso?
- Não posso jurar, mas eles estavam lá em casa pedindo trabalho e nisso os policiais chegaram. Cismaram com eles e os trouxeram para a delegacia.
- Se não tem o que temer, mais tardar amanhã meio dia estão na rua. Se tiverem a ver com o atentado, o caldo entorna seu Jerônimo.
- Providencia logo esse mandado. Eu pago o que precisarr. Peça para o delegado estabelecer a fiança!
- Vou tentar, mas não garanto nada. Acho bom o senhor ficar aqui, bem quieto e esperar minha volta. Nem pense em aparecer na delegacia, pois isso irá implicá-lo no caso.
- Não perca tempo doutor. Eles precisam sair daquela delegacia o quanto antes.
O advogado percebeu que o cliente estava envolvido até o pescoço na questão. Do contrário não estaria tão nervosa. Como isso iria lhe render bons honorários, foi fazer o que precisava. Antes ligou para o juiz para saber se poderia ser atendido antes do amanhecer e ficou sabendo que o meritíssimo estava em uma festga e voltaria mais tarde. Não era bom palpate incomodar tarde da noite. O homem ficava uma arara quando isso acontecia. O jeito era ir até a delegacia tentar convencer o delegado a soltar a dupla. O quanto antes pudesse fazer isso, aumentaria a chance de não fazerem eles cantar até o que não sabiam. Conhecia bem a habilidade dos invertigadores vindos recentemente. Eram capazes de fazer um defunto falar, quanto mais dois vivinhos da silva.
Deixou Jerônimo sentado em seu gabinete doméstico, diante de um litro de whisky e café numa térmica. Ele que servisse o que quisesse, pois a conta seria salgada depois. Sem hesitar dirigiu-se resolutamente à delegacia para avistar os detidos. Ao chegar ali, verificou que a repartição estava movimentada. Isso era visível pela presença do carro do delegado em pessoa. Teria que tomar cuidado com as palavras para não arrumar encrencas para seu lado. Frequentemente precisava da boa vontade das autoridades e uma palavra errada, dita no momento indevido, podia causar um grande estragon nesse relacionamento.
Chegou ao balcão da recepção e perguntou ao agente que ali estava de plantão:
- O Delegado Demétrio está aí?
- Está sim, doutor. Qual é o problema que o traz aqui?
- Fui avisado que dois clientes meus estão detidos e vim assistir aos depoimentos deles.
- Aguarde um momento por favor.
Levantou o telefone, discou um número e logo falou com alguém, certamente em outra sala.
- Doutor Delegado!
- Fala, Douglas.
- Está aqui o doutor Estevão. Ele quer falar com os detidos!
- Mande ele aguardar. Estamos terminando com eles dentro de cinco minutos.
- Certo, chefe. Vou avisar.
Desligou o aparelho e voltou-se para o doutor Estevão, dizendo:
- O Delegado já vail he receber. Espere um minute. Quer um café?
- Obrigado. Não quero tomar café a essa hora. Me dá dor de cabeça.
- Sente-se um pouco.
Estevão fez menção de ir para a área interna da delegacia, sendo impedido pelo policial.
- O senhor não pode entrar antes de receber autorização para isso. Faça o favor de sentar-se.
- Mas eu tenho pressa de falar com os meus clientes.
- Quem foi mesmo que lhe contratou, doutor Estevão?
- Eles mesmos.
- Se eles foram detidos na fazenda do seu Jerônimo e vieram diretamente para cá. Como eles puderam lhe avisar?
- Acontece que eu sou advogado do fazendeiro e ele me avisou por telefone. Vim atender a eles, pois tenho outras causas em que autuo a favor deles.
- Entendo, doutor.
Sentou-se e fez de conta que lia uma revista aberta sobre a mesa, mas os olhos vigiavam o advogado. Era melhor que ele se mantivesse quieto ali, salvo se quisesse arrumar encrenca. Enquanto isso, o delegado separara os dois detidos, colocando ambos sob os cuidados de interrogadores diferentes. Em dado momento um outro agente entrou numa sala dizendo:
- Pode confessar, amigo. Seu parceiro já deu todo o serviço.
- O quê? Aquele desgraçado abriu a boca.
Sem dizer mais nada o agente saiu e foi dizer ao delegado:
- A artimanha acaba de funcionar. O pássaro cantou legal. Foi dizer que o parceiro havia dado o serviço, ele ficou revoltado e perguntou se o outro tinha aberto o bico.
- Quer dizer que encontramos os dois mais depressa do que poderíamos imaginar. E pelo visto aquele fazendeiro está envolvido nisso.
- É o que iremos ver. Agora os colegas podem apertar bem e logo saberemos toda a verdade.
Em poucos minutos os dois interrogadores vieram, quase ao mesmo tempo, com largo sorriso no rosto. Tinham em mãos a confissão complete dos dois, apenas cada um dizia que for a apenas servir de motorista. O colega fora fazer a tocaia.
- Notável isso. Depois que a casa cai eles tentam incriminar um ao outro. Não se faz mais bandido como antigamente.
- É Doutor. Na hora do pega para capar, salve-se quem  puder.
- Vamos tomar o depoimento deles para não voltarem atrás. Tem um advogado aí na porta para falar com eles. Deve ter alguém no comando. Aposto meu soldo que isso é obra do fazendeiro onde eles foram encontrados.
- Eles não disseram ainda, mas dá para deduzir sem problema.
- Aperta um pouco e tira o resto do suco. Enquanto isso eu vou conversar com o advogado. Dou uma trovada nele até vocês terminarem o serviço.
Chamaram um escrivão e foram tomar os depoimentos. O delegado saiu até a portaria e fingiu surpresa com a presença do advogado.
- Boa noite, doutor Estevão! Tudo bem? E que lhe posso ser útil?
- Eu vim conversar com dois clientes meus que estão detidos. Preciso encaminhar um habeas corpus logo cedo e tenho que saber detalhes para elaborar o documento.
- Só um momento. Estamos remanejando uns pássaros aí dentro e logo lhe coloco diante dos seus clientes. Enquanto isso, venha até minha sala e conversamos um pouco.
Não tendo alternative, doutor Estevão entrou e sentou na poltrona diante da escrivaninha que o delegado lhe apontou. O assento parecia ter espinhos e não conseguia parar quieto. Ouviu o delegado dizer:
- O que o deixa tão inquieto doutor?
- Estou com uma dor incômoda na coluna e isso me faz procurar uma posição melhor.
- Sei como é isso.
- Preciso procurar um médico na semana que vem. Isso está me deixando maluco. Pior que tenho uma montanha de processos para atender e não sobra tempo para cuidar da saúde.
- Mas se não se cuidar, vai chegar uma hora em que não terá mais condições de levantar. Tem que se tratar. 
Nisso o agente veio até a porta e faz sinal ao delegado. Os depoimentos estavam tomados e devidamente assinados pelos dois detidos. Agora haviam sido colocados na mesma sala e tinham se lançado olhares furiosos mutuamente. Sinal de que se sentiam traídos pelo companheiro.
O advogado foi levado à presença dos dois e passaram a conversar sigilosamente. Ao ouvir a troca de acusações entre eles viu que chegara tarde. Nada mais poderia fazer. Tanto os dois como o fazendeiro estavam mais enrolados que novelo de linha. Determinou aos dois que não falassem mais nada sem a sua presença. O estragon feito já era grande o suficiente. Não precisariam dizer mais uma palavra para complicar. Falou-lhes que teriam que aguardar para ver se conseguiria encontrar uma maneira de eles responderem ao processo em liberdade. Não sabiam ainda que o coronel Onofre nada sofrera além de uma perfuração dos músculos da perna e já estava em casa. Se ele tivesse ido a óbito, o problema ficaria muito maior. O envolvimento de Jerônimo com o atentado, complicava tudo. O processo do litígio da divisa estava para ser julgado e provavelmente o delegado informaria ao juiz sobre o caso, quando desse entrada no habeas corpus. A chance de êxito era minima.
Voltou para casa e comunicou ao cliente tudo o que havia ocorrido. Determinou que ele voltasse para casa e não andasse por aí, sem ser chamado. Qualquer coisa seria motivo para sua prisão. Se o procurassem em casa, deveria ficar oculto, deixando o automóvel em algum lugar for a de vista. Enquanto isso tentaria manobrar, mexer os pauzinhos, para conseguir livrá-lo da cadeia antes do julgamento. Mandaria notícias assim que pudesse.
Jerônimo obedeceu e voltou para casa. Ia se recriminando pela sua imbecilidade em se deixar levar pelos sentimentos de vingança. Se tivesse mantido a cabeça fria, estaria agora perto de infligir uma derrota ao vizinho, como o doutor Estevão lhe garantira.
Agora não restava alternativa. Teria que aceitar que estava em dificuldades e não agravar mais a situação.



domingo, 28 de setembro de 2014

Gaúcho resolvido! - Capítulo IX




Hotel no centro de Porto Alegre.


 Encontrando a prenda do coração.


Tendo encontrado tudo nos conformes no escritório dos agentes, nosso estreante na cidade grande, saiu dali resolvido a marcar sua passage e voltar para os pagos. Eis que, enquanto caminhava a procura de uma agência da Varig para deixar acertada a hora da viagem, sentiu-se impressionado com um edifício de apartamentos situado bem em frente a uma praça. Era moderno, mais de 20 andares de modo a ser obrigado levantar a cabeça para ver os últimos andares. Quando baixava o olhar, ofuscado pelo sol que já ia alto, seus olhos foram atraidos como por um ímã, para a sacada do 5º andar. Ali uma jovem mulher estava apreciando os vasos com flores existentes e de vez em quando lançava um olhar para a rua mais abaixo.
Era de uma beleza incomum, foi o que o jovem observoufd. Rapidamente contou os andares, a localização da sacada bem no meio do edifício e tomou uma decisão. Iria depositar aos pés da bela prenda seu coração, sua vida, enfim seu ser inteiramente. A visão o deixara instantaneamente nocauteado. Como diziam entre os peões, o coração tinha capotado naquelas curvas suaves e sedutoras. O gaucho guapo estara literalmente “de quatro” diante de tamanha formosura.
Resolução tomada e posta em prática. Entrou pela portaria e, sem ao menos dizer nada nem perguntar por onde, foi direto até o elevador que estava casualmente aberto, entrou e apertou o botão com o número 5. A porta fechou e iniciou a subida, bem mais rápido que ele imaginava, mesmo assim a viagem até o quinto andar pareceu durar uma eternidade. No momento em que a porta abriu saltou para fora e via à sua frente uma porta com o número 501. Pela posição da sacada e do elevador, deveria ser aquele o apartamento onde morava o objeto de sua avassaladora paixão à primeira vista.
Um pouco receoso, mas sem titubear, apertou o botão da campainha por um longo momento. Enquanto isso acontecia, o porteiro tendo visto o estranho embarafustar saguão a dentro e subir no elevador, chamou dois ajudantes e os enviou em busca do intruso, porém não sabia onde tinha ido. Tiveram que observar onde o elevador parara, para só então tomar o outro ao lado e seguir. Enquanto isso o incauto e apressado Gaudêncio via a porta ser entreaberta e um rosto severo, bem barbeado, cabelo curto no estilo militar se mostrar na fresta. Uma voz impessoal perguntou:
            - Quem é o senhor? O que deseja?
            - Eu sou Gaudêncio das Neves, um seu criado. Venho lá de São Borja, mas precisamente da fazenda Santa Maria. Acabo de ver a sua filha na varanda de sua morada. Me apaixonei perdidamente por ela. Como não sou de perder tempo, decidi logo vir aqui lhe pedir a mão dela em namoro e sem muita demora a pedirei em casamento.
- Mas assim, sem sequer conhecer minha filha, sem conversar com ela, nem saber o que ela acha disso?
            - Não ai problema, meu senhor. Eu sou capaz de conquistar o amor dela em dois tempos. É apenas me dar uma oportunidade.
- Minha filha é acostumada à da cidade grande, muito mimada. Não é dada com afazeres domésticos, nunca viu uma fazenda. Ela leva vida de princesa. Creio que isso não dará certo, seu Gaudêncio.
- Nada disso é problema, patrão. Sua filha comigo não sentirá falta de nada. Não terá necessidade de trabalhar. Terá criadas para fazer os trabalhos da casa e será servida como uma rainha.
            - Tem outro problema. Ela é muito nervosa. Por qualquer motivo tem crises de neurastenia e causa sérios problemas dentro de casa.
            - Isto acaba com o casamento. O amor de um homem de verdade lhe dará o sossego e tranquilidade de que precisa. Pode deixar comigo que eu garanto a mão.
- Além de tudo isso, minha filha é acostumada a viajar todos os anos para a Europa, Estados Unidos e outros países que ela visita regularmente. Creio que isto irá lhe colocar em dificuldades.
            - Mas que dificuldades, tchê! Vou levar sua filha a todos os lugares do mundo que ela desejar visitar. Dinheiro não é problema, meu senhor. Sou herdeiro universal de Dom Joaquim Monteiro, criador de gado e plantador de arroz , dos mais ricos de São Borja. Não se consegue visitar a fazenda toda em um único dia. É muito grande. Tem inclusive parentesco distante com o Presidente Getúlio Vargas.
- Ia me esquecendo de lhe dizer. O problema mais grave com minha filha é que ela é um pouco manca da perna direita. Um probleminha de nascença.
- Mas o que tem isso? Eu não a quero para carreira. Quero apenas para tirar umas crias. O que ela tem de beleza, será suficiente para tornar sem importância qualquer outro problema que ela tenha. Eu estava na praça em frente e quando ela apareceu na varanda, eu quase tive um troço. Levei um baita susto, tamanha é a beleza desta criatura. Aceite os parabéns senhor....?
            - Sou o General Marcelino Ferreira, comandante da guarnição militar da região metropolitana de Porto Alegre.
            - Com quem o senhor está conversando papai? - ouviu-se uma voz melodiosa, vinda do interior do apartamento.
            - É bom você vir aqui ver pessoalmente. Acho que vai ser do seu interessi.
            Em instantes a dona da voz surgiu por trás do homem, perguntando:
- Mas o que está acontecendo?
            - Está aqui um homem apaixonado à primeira vista por sua pessoa. Você se exibiu na sacada e ele viu. Ficou loucamente apaixonado e está aqui pedindo a sua mão em namoro. Que lhe parece? Vamos conhecer a figura?
- Convida o moço a entrar, - disse por trás dos dois a mulher do general, senhora Lourdes, - pelo menos conversaremos e depois se vê o que pode ser feito.
Nisso os dois ajudantes do porteiro que haviam chegado quando a conversa ia a meio e ficado esperando o desfecho. Estavam prontos a agarrar o intruso e colocá-lo no olho da rua, mas diante das últimas palavras ouvidas, decidiram bater em retirada indo contar ao porteiro o que sucedia.
            - É melhor do que ficar criando discussão aqui na porta. Logo os vizinhos vão reparar e vira uma bagunça danada. - disse a filha.
            - Aguarde um instante que vamos abrir a porta. Por motivo de segurança ela fica travada por esta corrente. Cidade grande é assim mesmo.
            - Bem que me avisaram para tomar cuidado. É a minha primeira vinda a capital. Nunca saí muito longe de casa. Sou um pouco xucro, mas aprendo fácil. Em pouco tempo domino as manhas da vida daqui da cidade. Não há de ser mais difícil que domar um potro, um boi bravo.
A porta se abriu de par em par e Gaudêncio foi convidado a entrar numa sala, ricamente mobiliada, mas sem exageros de espécie alguma. Tudo tinha a medida certa. Sentou-se em uma poltrona que lhe indicaram e olhou ao redor ficando impressionado com a fineza do ambiente. Logo chegou dona Lourdes, trazendo uma cuia de chimarrão e uma garrafa térmica com água na temperatura certa de cevar o mate. Os olhos de Gaudêncio ficaram chocados com algo que viu, fazendo parte da decoração. Por toda parte escudos, símbolos diversos e as cores do uniforme do Gremio de Futebol Portoalegrense. Teria que controlar sua paixão colorada para não por a perder os pontos que conquistara até o momento. Seria como “pisar em ovos”. Um passo em falso e se quebravam todos.
- O moço certamente toma chimarrão! - disse de modo interrogativo o dono da casa.  
- Mas com certeza, tchê! Já viu um gaúcho que não aceita um amargo. Isto não existe.
            - Acho que a minha filha ainda não foi apresentada. Aliás nem o senhor disse seu nome. Falou uma porção de coisas e não disse o seu nome.
            - Eu mesma me apresento, mamãe. Sou Ângela Ferreira. E você? Creio que posso dizer assim!
            - Sou Gaudêncio das Neves, ao seu dispor, senhorita. E a senhora sua mãe, qual é o nome dela?
            - Eu sou Lourdes e fico honrada em receber em minha casa um gaúcho vestido a caráter. Já lhe disseram que lhe cai muito bem esta vestimenta típica?
- Obrigado, dona Lourdes. O senhor tem uma bela família, General.
            - Fico lisonjeado com isso. Mas ainda falta o filho mais velho. Ele está na AMAN. No final do ano que vem deve sair de lá como aspirante a oficial. Decidiu seguir os passos do pai.
            - Meus pais, trabalham desde que se casaram, para Dom Joaquim Monteiro, dono da fazenda Santa Maria. Com o tempo meu pai virou uma espécie de capataz geral. É ele que comanda todos os empregados tanto da criação de gado como do plantio de arroz. Minha mãe é a encarregada do setor de leite. Fazem queijo, requeijão, ricota e vendem leite para o laticínio.
            - Que mal lhe pergunte, como o senhor se tornou herdeiro da fazenda?
- Quando eu nasci, convidaram para serem meus padrinhos o Sr. Joaquim e sua esposa Ana Maria. Eles não tiveram filhos. Procuraram tudo quanto foi médico especialista, mas não houve jeito de nascer um herdeiro. Acabaram me adotando por assim dizer. Depois que a madrinha faleceu há um ano e meio atrás, o padrinho passou um tempo dando a impressão de que iria seguir a esposa. Foi meu pai que trouxe ele para a fazenda e lá tomamos conta dele, até ele se recuperar. Quando se restabeleceu, fez o inventário de tudo, mas não havia herdeiros de parte dela, ficou tudo para ele.
- E por não ter herdeiros lhe nomeou como tal?
- Aí está a questão. Não tendo a quem deixar sua fortuna, me nomeou herdeiro de todos os bens que possui. Hoje ele viaja para a Europa, Estados Unidos e outros países. Quem fica administrando tudo sou eu. Agora mesmo vim para a capital tratar de negócios com uma empresa de investimentos. Ele quer que eu tome conta de tudo. As vezes tenho a impressão de que ele está me preparando para depois partir. Sei que ele ainda sente muita falta da madrinha.
- Meu caro Gaudêncio! Tudo isso é muito bom, mas minha filha precisa lhe conhecer melhor, antes de eu consentir que você a namore. Podemos começar por fazermos uma visita à São Borja; conhecer sua família, seu padrinho, enfim tomarmos contato mais de perto. Até vai nos fazer bem passarmos uns dias no campo. Vivemos tanto tempo em casas do exército, rodando os quatro cantos do país e só agora, que a aposentadoria se aproxima, estamos morando em algo que é nosso. Mas viver em um apartamento é bem diferente do que num lugar aberto. Levantar e não bater com o nariz na porta do vizinho da frente, do lado.
            - Mas podemos combinar isso, general. Volto para a fazenda e deixo tudo pronto para a vossa chegada. Tenho certeza que irão ser recebidos com toda alegria. Minha mãe vai ficar orgulhosa de conhecer sua família, principalmente a senhorita Ângela.
- Mas primeiro quero ouvir a opinião das duas. Minha filha e a minha esposa, o que acham da ideia?
- Até que me atrai a idéia de passar uns dias numa fazenda, - disse dona Lourdes. - E você minha filha, que é parte mais interessada no jogo, o que acha disso?
            - Podemos ir, sem assumir nenhum compromisso prévio. Temos que nos conhecer melhor, antes de qualquer decisão que envolva tanta coisa como é o caso aqui. Alguns dias de convivência, poderão nos dar uma ideia do que pode ser esperado do futuro.
            - É uma boa ssugestão. Já resolve os negócios. Vou voltar para a fazenda. Preparo tudo e aviso vocês quando puderem chegar por lá. Mando as passagens de avião.
            - Não precisa se preocupar com isso. Basta nos avisar que iremos de carro. Sou viciado em dirigir e vai ser uma boa oportunidade de testar meu carro novo na estrada. Por ora vamos começar por almoçar juntos agora. Creio que tem água suficiente no feijão para mais um encher a barriga. - falou o general rindo alegremente.
            - Para mim serve. Está na hora do almoço e eu teria que procurar um restaurante. Vou aceitar o seu convite e aproveitamos para conversar mais um pouco.
            Enquanto mãe e filha foram até a cozinha para supervisionar a cozinheira na preparação de mais um lugar à mesa, o general convidou o candidato a genro para tomarem um aperitivo. Serviu uma dose de whisky para cada um e alcançou o copo para Gaudêncio, sentando-se com o outro na mão.
            - À sua saúde e a uma boa amizade entre nossas famílias para começo de história!
            Os copos foram levantados em sinal de brinde, depois beberam um gole cada um. Gaudêncio tivera oportunidade de experimentar da bebida, considerada coisa de grão fino, uma vez em casa de Joaquim. De sua parte preferia mesmo uma cachaça  da boa. Pensando em iniciar um relacionamento com a família do general, era importante acostumar a tomar, pelo menos de vez em quando, uma dose de whisky. Procurou sentir todas as nuances do sabor da bebida e identificar sua características básicas. Olhando novamente para os detalhes em azul, branco e preto na decoração, falou:
            - Não resta dúvida que aqui é a casa de uma família gremista!
- Sem exceção. Levei a minha Lourdes a assistir muitos jogos do Grêmio, mesmo nos estados do norte onde servi por bom tempo. A filha cresceu vestindo as cores do time e nunca pensou em mudra de cor.
            - Ontem fui assistir o jogo do Colorado com o Flamengo. Que sofrimento, mas no fim ganhamos de 1x0.
            - Colorado?
            - Sim, desde criança. Mas não sou fanático. Lá na fazenda jogamos umas peladas. Sempre dá Colorado contra Grêmio. Hoje um ganha, amanhã outro e no fim tudo termina em festa.
            - É assim que tem que ser. A torcida se resume dentro do campo, nas brincadeiras entre colegas e amigos. É uma coisa saudável. Quando degringola para o campo de ofensas e desrespeito não é mais esporte. Vira anarquia.
            - Assim mesmo que eu penso. A graça está justamente no ganha/perde, ora de um lado ora de outro.
            - Vamos junto assistir o jogo de domingo? Tem um jogo do Grêmio, amistoso com o Nacional do Uruguai. Um jogão dos bons.
            - Eu tinha pensado em viajar amanhã, mas posso deixar para segunda feira e vou assistir a esse jogo. Assim levo umas fotografias e um filme para os amigos gremistas da fazenda verem. Mostro a eles que fui assistir um jogo de cada lado. Se mostrar só o do Colorado, eles ficam magoados.
            - Sábado temos uma sessão de estréia de uma peça de teatro para ir. Vou ver se consigo mais um ingresso para podermos ir juntos.
            Gaudêncio percebeu que o general simpatizara com ele e sentiu-se mais confiante. Caberia a ele jogar toda sua sedução para encantar bela filha e assim atingir o objetivo que o levara a cometer a pequena loucura daquela manhã. Subir se autorização e tocar a campainha de um apartamento sem ao menos saber que ali morava, bem pensado era maluquice das grandes. Mas estava feito e dera resultado melhor do que poderia ter esperado. Agora era seguir em frente e ver onde iria parar tudo isso.
            O almoço foi servido e Ângela veio chamar os dois. Sentaram-se e Gaudêncio sentiu-se um pouco acanhado naquela sala de refeições requintada. Não era de todo xucro nas etiquetas, pois a madrinha lhe dera algumas lições, mas nunca tivera oportunidade de sentar-se a uma mesa tão fina. As louças todas de porcelana finíssima, talheres de fino acabamento, guardanapos impecávelmente brancos, copos de cristal. Uma garrafa de vinho tinto recem aberta estava ali para acompanhar a refeição. A comida não era nada for a do normal, embora estivesse tudo acondicionado em recipients de alta qualidade.
            Serviram-se, tomando ele o cuidado para não exagerar nas quantidades. Preferia ficar com um pouco de fome do que servir um prato cheio demais. Notou com satisfação que o general não era dado a muito requinte. Serviu-se generosamente e comeu com gosto. Provavelmente esse hábito vinha de suas estadias em acampamentos militares, onde determinados hábitos eram deixados em segundo plano. Por fim, seguindo exemplo do dono da casa, Gaudêncio repetiu e parou quando estava plenamente satisfeito. O vinho estava ótimo e tomaram até a última gota. As mulheres por sua vez tomaram pequenas porções, como convinha a uma senhora e sua filha.
            A lauta refeição foi arrematada com um cálice de licor que o general serviu para todos, sentados na sala de visitas. Passaram algum tempo conversando e em seus deslocamentos de um lugar para o outro foi possível percber uma leve claudicação de Ângela. Algo muito pouco perceptível. Praticamente não lhe afetava o desempenho em nada. Havia fotografias do baile de debutantes em que ela estava dançando, ela jogava ou jogara Voleibol. Pelo menos isso mostrava uma fotografia ampliada, onde aparecia de uniforme esportivo numa quadra desse esporte. A alegação do general de que isso seria um impedimento para o relacionamento dos dois era apenas um pretexto para despedir um inconveniente que lhe batera à porta.
            Vendo o relógio notou que o tempo passara e eram 14h. Pediu licença e se despediu, ficando combinado que iriam domingo ao Olímpico ver o jogo. Se o general conseguisse um ingresso para ele, lhe avisaria e ele os acompanharia ao teatro sábado à noite. Ao apertar a mão de Ângela, sentiu-lhe a maciez, a delicadeza, junto com um leve tremor, a sua face se cobriu um leve rubor. Ela também estava influenciada com a presença dele. Foi até a agência da Varig e marcou o seu embarque para a segunda feira a tarde. Avisou o padrinho de que passaria o final de semana na capital e chegaria segunda feira à tarde. Não deixou transparecer nada do que acontecera naquela manhã.
            Voltou para o hotel e ficou ali algum tempo vendo televisão, onde estava passando um filme que lhe interessou. Pouco anteso do jantar o general ligou para a portaria do hotel, deixando recado para ele de que havia conseguido o ingresso para o teatro. Estaria a sua espera no começo da noite de sábado. Lembrou de ir na manhã seguinte procurar a agência e adquirir os ingressos para o jogo de domingo a tarde. Aproveitou e deixou os filmes já usados para revelar e comprou outros em quantidade suficiente para registrar as diferentes etapas de seu passeio na capital.
            A cada pouco seus pensamentos voltavam para a Formosa filha do general. Conhecera inúmeras prendas de grande beleza nos campos de São Borja, mas nenhuma fizera seu coração pulsar tão intensamente quanto Ângela Ferreira. Não saberia explicar. Parecia algo mágico, místico mesmo. Bastara olhar sua silhueta contra a luz da manhã ali na sacada e sentire uma fisgada no peito. Ouvira falar de um tal de cupido que atira flechas mágicas enfeitiçando os corações dos jovens para se enamorarem. Vai ver que fora isso que acontecera com ele.
            À noite voltou ao cinema onde estivera na segunda feira e assistiu outra fita que entrara em cartaz. Caminhou pelas ruas e depois voltou ao hotel. A idéia que chegara a fulguar em sua mente no primeiro dia de procurar uma casa noturna para ver se encontrava companhia feminine, sumira completamente. Seus pensamentos estavam fixados em Ângela e ela ocupava cada momento de sua vida. Dormiu pensando nela e na manhã seguinte adquiriu os ingressos e depois ligou do hotel para a casa dos pais avisando que não havia necessidade de se preocuparem com os bilhetes. Ele os providenciara.
            Almoçou num restaurante diferente e depois caminou até o lugar do circo. Estava disposto a ver novamente as exibições de habilidades dos acrobatas e equilibristas. Era bem provável que tivesse havido alguma mudança na apresentação daquele dia. De fato os números eram ligeiramene diferentes dos que havia visto da primeira vez. Ao sair do circo passou por uma loja de roupas e comprou para si duas mudas completes de roupas. Aproveitou e também procurou umas camisas e bombachas para o pai. Um vestido para a mãe. Precisou fazer uso de sua memória visual para encontrar um número que ficasse bom nela. Era mais magra que o habitual em sua idade e não era fácil conseguir acertar o manequim. A vendedora lhe informou que era possível fazer ajustes para maior ou menor se fosse preciso e ele pagou tudo, levando o que comprara para o hotel.
            De repende lembrou que esquecera do tamanho de sua mala. Era pequena e não havia espaço sobrando. Teria que ver no sábado uma bolsa ou algo assim para acondicionar as compras. Daria um jeito. Comprara e pronto. Levaria tudo, nem que fosse preciso pagar algum excesso de bagagem no avião. Ficou assistindo televisão no hotel depois do jantar e depois foi dormir.
            A manhã de sábado passou procurando uma pequena mala para acomodar suas compras e pensou em adquirir um presente para Ângela. Mas o que ficaria bem? Uma jóia não estaria na hora, acabavam de se conhecer. Roupa? Desconhecia as suas preferências e não teria como adivinhar. Uma vendedora veio em seu socorro, sugerindo um perfume. É isso aí! Vou comprar um perfume bem suave, que combine com a suavidade e delicadeza da moça. Procurou por uma perfumaria, anexa a uma farmácia e passou mais de meia hora testando os odors de diversos frascos, até se decidir por um deles. Pediu para fazerem um pacote para presente que foi prontamente providenciado. Levou tudo ao hotel e tornou a descer para almoçar.
            A tarde passou no hotel cuidando de sua aparência. O cabelo estava bem aparado e o bigode precisou apenas de um leve retoque para deixá-lo ao seu gosto. Por volta das 5h começou a se vestir, caprichando nos detalhes. Não queria parecer afetado, mas também não convinha dar a impressão de desleixo. Ia participar de uma sessão de estréia de uma peça de teatro famosa, junto com uma família distinta. O pai da moça era general do exército, comandante da região militar. Por volta das 7h apresentou-se na portaria do edifício. Dessa vez não entrou direto. Chegou na portaria e pediu para ser anunciado. Levava na mão o pacote para presente que daria à Ângela. O porteiro comunicou-se com a família e logo o autorizou a subir.
            Pegou o elevador e alguns instantes depois chegava novamente diante do 501. Mal havia tocado a campainha e a porta estava sendo aberta. Dessa vez sem ter a corrente de segurança, pois haviam visto pelo olho mágico de quem se tratava. Ângela o convidou a entrar e ele aproveitou ali mesmo, depois de a porta ser fechada, para entregar o presente que trazia. A moça agradeceu e logo seus dedos delicados desfizeram o laço de fita e desembrulharam o conteúdo. Abriu o vidro e lhe sentiu o suave perfume. Seus olhos brilharam e ela falou:
            - Obrigada, Gaudêncio. Como adivinhou que esse é meu perfume predileto?
            - Acho que adivinhei mesmo. Tive a impressão de que ele combinaria com sua personalidade, sua delicadeza.
            - Vocês vão ficar aí na porta de conversa? Venham para cá. Vamos tomar uma refeição leve antes de irmos ao Teatro. A peça deve terminar tarde e até lá ficaremos com fome. – falou o pai chegando perto.
            - Olhe pai que perfume eu ganhei! Exatamente o que eu gosto.
            - Estou vendo que encontrou alguém de bom gosto e afinado com o seu.
            - Vamos comer pois ainda temos que terminar de nos vestir para a noite, - falou Ângela.
            Comeram pão com presunto, queijo fatiado, acompanhado de café com leite. Depois a família tratou de ultimar seu vestuário para sair. O general estava pronto, faltando apenas colocar o paletó e a gravata. Isso levaria um instante. Faltando cerca de meia hora desceram para embarcarem num taxi que os deixou à porta do teatro. A peça excedeu as espectativas de todos e em vários momentos era possível ver gente enxugando as lágrimas, tamanha era a carga emotiva do enredo. Ao saírem eram visíveis os sinais das lágrimas, especialmente no rosto das damas, onde a maquiagem ficara borrada ou fora removida pelo uso dos lenços. Ninguém se importou com isso pois voltariam para suas casas sem dar oportunidade a mais ninguém de observar o estrago.

Teatro Renascença.

            Gaudêncio se despediu à porta do edifício, deixando combinada a hora de irem no domingo para o estádio. Dona Lourdes falou:
            - Por que não vem almoçar com a gente? Depois podemo sir mais tranquilos para o estádio. Chegando mais cedo, pode-se escolher melhor o lugar para ver a partida.
            O convite foi aceito e todos seguiram para ter uma noite de sono, embalada por lembranças da peça de teatro assistida há pouco.
            No domingo às 10h 20 min. Gaudêncio chegou à casa do general. O clima era todo em azul, branco e preto, até a toalha de mesa, os guardanapos, os copos continham o símbolo. Sentiu-se encolher, mas não diria nada. Haveria tempo para mostrar, na hora oportuna, sua preferência pelo Colorado. Almoçaram e depois de um pequeno Descanso seguiram para o estádio. Chegaram com mais de hora e meia de antecedência. Entraram, escolheram o lugar para sentar e ali ficaram esperando. Haviam levado sanduiches e garrafas de água para suportar o calor da tarde que seria forte e demorado. No meio de uma multidão azul, o tempo passou rápido e quando viram os times haviam feito o aquecimento e faziam agora sua entrada para a partida.

Povo na rua em dia de jogos dos dois clubes.

            O resultado não importava muito a Gaudêncio, mesmo assim, acabou torcendo pelo time brasileiro. Naquele momento era Brasil contra Uruguai. Ganhar dos estrangeiros sempre era bom.
            O jogo terminou com um empate em 2x2 e os torcedores não ficaram plenamente satisfeitos. Mesmo assim não haviam sido derrotados, pois ultimamente vinham sofrendo com uma série de derrotas inaceitáveis. Diante disso um empate com o Nacional do Uruguai, tinha um sabor menos amargo. Melhor teria sido a vitória, mas na impossibilidade e tendo em vista o equilíbrio havido durante o jogo, era um resultado satisfatório.
            Retornaram para casa, despediram-se e combinaram comunicar-se para marcar a data em que a família visitasse a fazenda. Gaudêncio voltou para hotel onde preparou suas malas. Não iria sair muito cedo para o aeroporto, mas dormir bastante estava a lhe fazer falta. Andara abusando durante a semana, deitando tarde e levantando cedo. Jantou no hotel e depois de olhar o fantastico na TV, foi dormir. Levantou pela manhã a tempo de tomar café. Depois fechou a conta, pediu a um carregador para levar as malas para um taxi e foi para o aeroporto. Almoçaria por ali mesmo e logo embarcaria no avião. Não queria chegar atrasado e não havia mais nada a fazer.
            Pontualmente às 16 h o avião tocou a pista de pouso do aeródromo de São Borja. O padrinho Joaquim o esperava no saguão e o abraçou carinhosamente. As bagagens foram levadas para o automóvel e voltaram para casa.