Entrega das intimações
Três semanas depois de encaminhados os processos, foi
marcada a audiência para eventual conciliação ou julgamento da matéria. Em havendo
evidências para o proferimento de sentença, o Meritíssimo Juiz da vara cível
proferiria a sentença, da qual caberia recurso, para produção de novas provas
de ambas as partes litigantes. Não havendo recurso, a sentença seria executada
e o processo arquivado como concluido. As intimações às partes e testemunhas
foram emitidas, havendo um prazo entra a data de intimação e a realização da
audiência, visando permitir à parte demandada constituir sua defesa, arrolar
testemunhas e provas em seu favor.
A entrega das intimações precise ser realizada em mãos
pelo oficial de justiça. Como ambas as partes residiam na mesma redondeza, um
mesmo oficial foi encarregado da entrega de todas as intimações. Chegou
primeiramenete na casa de Onofre, onde não encontrou dificuldade em realizer sua
tarefa. Ao contrário, o mesmo ficou contente em saber o dia em que seria feita
justiça em seu favor, disso tinha certeza. Depositava no doutor José Silvério
uma confiança quase cega. Faria o possível e o impossível para ganhar essa
causa em seu favor.
Quando chegou na propriedade de Jerônimo de Alcântara,
a situação ficou complicada. Ao ver o veículo com placa oficial o proprietário
ficou de cabelo em pé. Ouvira murmúrios de que o vizinho havia contratado
advogado para questionar seu direito ao uso da água da vertente, próxima da
divisa. Sempre desconfiara de que aquela demarcação realizada anos antes, no
tempo de seu pai, quando ele era criança, não for a feita com lisura. Quando
teve oportunidade contratou um agrimensor que fez, sem avisar o vizinho, uma
nova demarcação e agora a vertente estavam em seus domínios.
Acolheu o oficial com a carra amarrada, esperando para
ver o que viria. Ao saber do que se tratava, ficou furioso. Deu um berro e
imediatamente um par de capangas surgiu ao seu lado, perguntando o que
acontecia e ele lhes dissect:
- Botem para correr esse oficialzinho de justiça. Não
vou assinar intimação alguma e quero ver quem vai me obrigar.
- Senhor, não precise de violência. Nós vamos embora e
o senhor receberá de outra forma essa intimação.
Deu meia volta, embarcou no jipe e voltaram para a
cidade. Alguns dias depois, duas viaturas da polícia militar, transportando um
contingente de oito soldados e um sargento, escoltaram a viatura do oficial de
justiça ao patio da fazenda de Jerônimo. Os policiais ficaram aguardando,
mantendo as armas ao alcance das mãos, enquanto o oficial fazia a entrega da
intimação. Diante dessa demonstração de força, Jerônimo manteve a custo a
raiva, e assinou a intimação. Havia nesse interim procurado um advogado que lhe
aconselhara receber por bem a intimação, do contrário iria responder por mais
um ato delituoso. Desacato à autoridade, por ter usado a intimidação diante do
oficial de justiça. Tinha que cuidar para não complicar mais o que parecia não
ser tão simples como ele pensare que fosse.
Depois de assinar a intimação, o sargento desceu da
viatura e chegou perto, dizendo:
- Senhor Jerônimo, eu trago uma ordem de prisão contra
sua pessoa, emitida pelo Exmo. Juiz da vara cívil, por desacato a autoridade do
oficial de justiça no dia em que veio lhe entregar a intimação que agora o senhor
recebeu. O senhor me acompanha por bem, ou vou ter que usar a força?
Olhou ao redor e ali estavam os soldados com as mãos
prontas para empunhar as armas em defesa de seu chefe.
- Eu vou, mas no meu automóvel.
- Alguém vai levar seu automóvel e o senhor nos
acompanha na viatura. Quando o Juiz lhe liberar vai voltar com quem lhe for
buscar.
- Mas sargento…
- Nada de mas, senhor Jerônimo! Nem meio mas! Ou
prefere ser algemado agora mesmo?
- Casimiro, pega aqui as chaves e os documentos do
auto. Venha atrás da gente para me buscar. Aliás já passa logo no doutor Paulo
e peça para ele providenciar minha soltura.
- Pois não patrão. Vou levar o Chico comigo para não
ir sozinho.
- Mas não siga muito perto das viaturas. Mantenha pelo
menos cem metros de distância, - falou o sargento.
Todos embarcaram, fizeram a volta e rumaram para a
cidade. Em poucos minutos era possível ver, seguindo atrás dos veículos
oficiais, a caminhonete de Jerônimo, indo em sentido da cidade. Quem passava
pela estrada ficava achando estranha a presença de Jerônimo do veículo policial
e os empregados dirigindo sua caminhonete. Não tardou a notícia chegar aos
ouvidos de Onofre e este se rachou de dar risada. Ficara sabendo que o vizinho
botara para correr o oficial de justiça na primeira vez e agora estava levando o
que merecia. Aprenderia a respeitar autoridade.
Chegaram ao forum e levaram Jerônimo direto para a
ante-sala do gabinete do juiz. Foi anunciada a sua presença e logo o magistrado
mandou que o fizessem entrar. Era um homem bem menos arrogante e altivo que
estava ali. Mantinha-se de cabeça baixa esperando o veredito do juiz. Este folheou
uma pequena pasta e, puxando os óculos sobre a ponta do nariz, encarou o homem
a sua frente e falou:
- Então esse é o homem que não recebe intimação das mãos
do oficial de justiça? Chama os capangas e manda por para correr a autoridade! Que
tal fazer isso agora, aqui na minha frente, senhor Jerônimo! Vamos, comece.
Diante do mutismo do homem, o juiz tornou a falar:
- Engraçado, parece que o gato comeu sua língua agora,
ou a perdeu na estrada! Eu devia lhe botar na cadeia por trinta dias pelo
menos, seu Jerônimo. Mas como tem pouco mais que isso para providenciar sua
defesa no processo de litígio de divisas e outras pendengas, vou fixar sua
fiança. Providencia um advogado para trazer o dinheiro e depois o libero. Levem
ele para a sala de detenção provisória até que o advogado venha livrá-lo dessa
enrascada.
- Meu advogado daqui a pouco estará aqui. Pode fixar a
fiança que e providencio o dinheiro.
- Já vou fazer isso, mas não quero lhe ver mais na
minha frente antes do dia da audiência. Agora pode ir e se controle, ou mando
lhe aplicar um corretivo.
Em questão de meia hora o advogado, doutor Paulo de
Andrade, chegou e recebeu das mãos do juiz a fiança estipulada. Foi falar com
Jerônimo e lhe disse:
- Fique calmo e vamos logo providenciar esse dinheiro.
O senhor escapou liso. Esse juiz é severo e não gosta de ser desobedecido. Onde
foi que estava com a cabeça ao botar para correr o oficial de justiça?
- Nem eu sei direito, doutor! Me deu uma raiva naquele
dia e não me controle. Quando vi já tinha feito.
- Isso poderia ter custado bem mais caro, seu Jerônimo.
- Posso fazer um cheque para retirar no banco antes
que feche?
- Faça logo pois não demora para fechar o expediente.
O cheque foi preenchido, sendo acresdido do honorário
do advogado. Ele tivera que interromper uma entrevista importante para atender
a emergência do cliente. Não faria isso sem cobrar seu trabalho.
Quando o dinheiro da fiança chegou às mãos do juiz,
feito o recibo, imediatamente foi dada a ordem de soltura do detido. Os
capangas aguardavam do lado de fora com a caminhonete para levar o patrão para
casa. Estavam assustados, pois nunca haviam passado por uma situação dessas. O
mais perto que haviam chegado de um juiz era alguns quilômetros de distância.
Hoje tinham ficado a espera diante do forum, vendo entrar e sair grupos de
policiais, viaturas adentrando o patio, homens de terno e gravata chegando e
saindo. Queriam rapidamente sair dali e voltar a sentir-se em seu elemento, bem
longe daquele lugar.
Jerônimo não estava para muita conversa. Apenas respondeu
com monossílabos às perguntas dos capangas que logo notaram e se mantiveram em
silêncio. Não era aconselhável perturbar o patrão quando estava enfezado. Os
dias seguintes foram de intensa movimentação na propriedade de Jerônimo. Foram
frequentes visitas ao advogado, levando testemunhas, documentos solicitados
pelo advogado, para preparar adequadamente a defesa. O tempo era escasso, pois
a teimosia do acusado, consumira preciosos dias que teriam sido importantes na
preparação da defesa.
Nesse meio tempo, Antônio B. Lemos visitou, em
companhia de José Silvério, a fazenda de Onofre, para fazer o levantamento
detalhado de todos os quadros de Isabel. Ao todo catalogou 112 peças, incluindo
os que estavam na casa, enfeitando as paredes. Foi preciso identificar cada um
com um nome e foi Isabel que teve a tarefa de fazer a escolha dos nomes. Muitos
eram óbvios devido ao objeto retratado, outros ao contrário, exigiam uma
denominação diferenciada para evitar a repetição de nomes. Fez uso de indices
numéricos para tal. Cada um recebia, junto ao nome, a data de conclusão. Dessa forma
formou-se um acervo bem seleto. Nada havia a excluir, mesmo os produzidos logo
no início da atividade. Permitiam traçar a trajetória evolutiva da artista.
Com um catálogo de fotografias detalhadas em mãos, Antônio
procurou os proprietários da galeria e negociou o evento. Conseguiu uma semana
livre em um prazo de 90 dias. Levou Isabel para assinar o contrato com a
galeria e patrocinadores. Foi estabelecido um valor mínimo para cada peça a ser
exposta e feito o mapa da exposição. Ao entrar o visitante encontraria os
trabalhos de início da carreira e aos poucos vinham os de datas mais recentes,
até o dia mais próximo da data do evento. Instada por Antônio ela levou uma
tela inacabada e cada dia dava algumas pinceladas dando a impressão de um
trabalho em construção. Dessa forma era comum os visitants encontrarem a
pintora com o avental, pincéis e tintas em punho, dando algumas pinceladas.
Enquanto aguardavam a realização do evento, eram
feitos contatos com outras galerias, principalmente da capital e muitos machand’s
confirmaram a presença para conhecer a nova artista. Alguns expoentes do mundo
artístico confirmaram presença na noite de inauguração, o que viria abrilhantar
a noite. Nos dias subsequentes haveria horários de visitação no período da manhã,
tarde e começo da noite.
As semanas passaram rapidamente e o dia da audiência
se aproximava. Num dia desses, Onofre se viu frente a frente com o vizinho Jerônimo,
aos air de uma agência do Banco do Brasil. Onofre ia passar sem dizer palavra. O
vizinho o interpelou:
- Está imaginando que vai ganhar a causa, coronel?
Pode esquecer. Meu advogado vai dar uma surra no seu, aquele molecote, filho do
dono da mercearia e vai arancar de você uma boa indenização.
- Tem certeza?
- Se tenho! São favas contadas. Depois vou dar uma
festa em comemoração, paga com seu dinheiro, coronel de meia pataca.
- Veremos, Jerônimo. Tenho mais o que fazer. Passar
bem vizinho.
O que Jerônimo não sabia é que Onofre, com o mapa e
laudo da demarcação feita anteriormente, fora ao cartório e registrara o documento.
Dessa forma ele passara a fazer parte da documentação da propriedade e nele
estava claramente especificada a localização da vertente motivadora da discórdia.
O doutor Paulo, recebendo um mapa inverso, datado de época mais recente, mas
sem o devido registro, tinha absoluta certeza de que a causa estava ganha. Disso
resultava a certeza de Jerônimo quanto ao resultado do julgamento que
resolveria a questão.
Antes de empreender o retorno, Onofre passou no escritório
e contou a José Silvério o encontro que tivera com o seu desafeto. Foi aconselhado
a não revidar nenhuma provocação. Até mesmo os seus empregados deveriam reagir
a eventuais agressões provenientes de empregados de Jerônimo. Qualquer ato
impensado viria prejudicar o resultado do processo. Seria preciso manter a
serenidade, mesmo a custa de muito esforço. Havia a possibilidade de ser contratado
algum pistoleiro para executar alguma forma de vingança, antes ou depois do
julgamento. Era recomendavel não sair sozinho da propriedade e nem percorrer
sem acompanhante os seus domínios. Infelizmente ainda não era possível confiar
inteiramente nos trâmites da justiça. Uma bala perdida, disparada de tocaia era
capaz de causar muito mal e depois não haveria sentença que desse resultado.
Onofre falou que já adotara desde algumas semanas,
especialmente quando soubera do episódio do oficial de justiça posto a correr
pelo vizinho, a providência de estar sempre acompanhado de pelo menos um de
seus tabalhadores. Não convinha se expor sem necessidade. Talvez depois da
sentença, com algum tempo para digerir a questão, o vizinho viesse a se tornar
menos agressivo e truculento.
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