Paixão infantil se transforma em amor.
Para Margarida a vida
fluía plácida e serena. Suas preocupações principais eram dominar os
conhecimentos necessários para administrar com sabedoria um lar, supervisionar
os trabalhos de criadas, dedicar horas e horas a fazer trabalhos manuais,
outras tantas em ler. Todavia, pelo menos duas vezes por semana ela saia a
cavalgar pelos domínios da fazenda, em sua bela égua alazão. Fora dada de
presente pela mãe por ocasião dos seus quinze anos. Carlota encarregara
Francisco de lhe ensinar os rudimentos de montaria, coisa que ela dominara
rapidamente. No princípio Francisco a acompanhava pessoalmente, ou encarregava
um dos peões de tal tarefa. Enquanto não estivesse segura sobre o animal, havia
sempre algum risco de sofrer uma queda num lugar distante e necessitar de socorro.
Aos poucos ela adquiriu
desenvoltura e se aventurou a explorar os recantos mais afastados sozinha. Diversas
vezes cuidou de selar o animal ela mesma, pois fizera questão de dominar esse
detalhe, para poder se defender em caso de necessidade. Não revelara que, na
verdade, sua intenção é sair solitária, a vagar pelos lugares mais ermos,
apreciar as belezas naturais que ali estavam disponíveis.
Em uma dessas ocasiões
levou um susto. Estava perto de um córrego, bem na beira de um capão de mato,
quando a égua refugou seguir avante. Em vão a amazona instigou o animal a
caminhar. Ela ameaçou empinar e Margarida lembrou que era preciso acalma-la,
acariciando-lhe a crina, o pescoço e falando calmamente. Com a rédea manobrou
para o lado ao que ela obedeceu prontamente. Alguns passos adiante, parou e
olhou para trás e então viu uma enorme serpente, pronta para dar o bote, visível
sob uma moita de espinheiro, ao lado da qual ela estivera prestes a passer.
Pensou consigo mesmo que não havia problema em deixare o animal peçonhento ali,
pois aquele lugar pelo visto dificilmente seria usado para pastoreio de gado.
Que ficasse ali em paz.
Em um galope bem disposto retornou para partes menos afastadas e tomou a resolução de não mais ir tão
distante, salvo se estivesse acompanhada. Sua sorte for a égua ser muito mansa
e ter apenas se recusado a chegar perto do lugar em que estava o perigo. Sua
percepção sensorial a avisara da existência do risco. Enquanto o animal
caminhava a passo de volta para casa, ia conversando carinhosamente com ela e
em diversos momentos recebeu como resposta leves bufidos do animal. Voltou para
casa e depois de algum tempo contou para Carlota o acontecido. Uma leve
reprimenda pela audácia de ir tão longe e depois um elogio por ter seguido o
instinto do animal. Naquela circunstância nenhum cavalo obedeceria ao comando
se expondo a uma picada de cobra.
Passaram a fazer
cavalgadas em companhia uma da outra. A mãe, cansada das ocupações
administrativas, gostava de percorrer sua propriedade, ver pessoalmente o
estado das pastagens, o progresso da criação, de modo que na maior parte das
vezes cavalgavam juntas.
Os meses se sucederam,
depois os anos se somaram e Margarida continuava em sua vida alegre e
despreocupada. Quando contava com 18 anos completes, houve um fandango na
fazenda vizinha e ali compareceram todos os rapazes e moças da redondeza. Os músicos
eram excelentes e a dança rolava alegre. Valsas, vaneiras, xotes, tangos,
polcas e outras danças se sucediam. Em dado momento Margarida viu Francisco
dançando com uma jovem bonita e conversando animadamente. Ao final da música
viu que os dois permaneceram parados juntos de mão dada e ela sentiu uma
pontada no peito. Haviam convivido mais como irmãos os últimos anos e ele
estava em seu pleno direito de dançar com quem quisesse, bem como iniciar
namoro e mesmo casar.
Foi um choque ver o
capataz naquela situação. Decidiu parar de dançar por um momento, foi até um
pequeno reservado e ali sentou para pensar por alguns momentos. Quando a mãe
veio indagar o que havia alegou uma ligeira indisposição, mas não revelou o
real motivo disso. Voltou ao salão depois e dançou mas nada estava como devia.
Cada vez que levantava o olhar seus olhos caiam sobre Francisco e seu par. Pelo
visto havia algo de mais sério acontecendo, do que um leve flerte. O coração de
Margarida estava cada vez mais inquieto até que, não suportando mais, disse à mãe
que gostaria de voltar para casa pois não estava se sentindo muito bem.
Carlota levou-a sem
demora ao lar e lá Siá Balbina preparou-lhe um chá de camomila com erva doce
para acalmar. Aos poucos, mesmo vendo constantemente o par diante dos olhos, o
sono a dominou. Dormiu pesadamente, tendo pesadelos onde via Francisco no altar
recebendo a bela jovem pore sposa e ela impotente sem poder fazer nada. Ao acordar,
pensou longamente no assunto e decidiu deixare o tempo correr. Se fosse desígnio
de Deus eles se casarem, não adiantaria nada tentar impedir. De fato em alguns
meses ficou sabendo que o casal estava noivo e logo marcariam o casamento. Ela
ia frequentemente até a área de trabalho dos peões e conversava com Francisco,
usando sempre uma roupa bem bonita, enfeitando o cabelo, exibindo todos os seus
generosos dotes femininos. Imaginava que, se tivesse uma chance de conquistá-lo,
teria que ser por esse meio, do contrário, precisaria se render às evidências.
Um dia alguém repararia nela e lhe faria a corte.
Em verdade havia vários
rapazes da região interessados nisso, mas lhe pareciam muito superficiais, sem
consistência. Não queria ter ao seu lado alguém que precisaria ser comandado,
como se for a um mero serviçal. Queria um homem firme, decidido e másculo. Isso
ela não havia encontrado ainda, tirando Francisco que estava comprometido com
outra.
A data do casamento foi
marcada e seria realizada uma cerimônia simples na capela da fazenda e depois
um churrasco para os trabalhadores além dos parentes e vizinhos. Tudo foi
preparado, sem exageros, mas não havia carência de nada. Seria uma bela festa
de casamento como mandava o costume campeiro. Na hora da cerimônia, Margarida
demorou mais do que o costume para se arrumar, sendo apressada pela mãe que não
queria chegar atrasada.
No momento em que o
padre realizava o ritual do casamento, antes da cerimônia da missa propriamente
dita, chegou o momento de perguntar:
-
Se alguém entre os presentes tiver alguma coisa que
possa impedir esse matrimônio, que fale agora ou cale-se para sempre!
Alguns instantes de silêncio e quando a cerimônia já
ia ter prosseguimento, uma voz forte e cristalina se fez ouvir.
-
Eu tenho, padre!
Todos os olhares procuraram para a pessoa que pro?nunciara
essas palavras e constataram tartar-se de Margarida. Carlota atônita quis saber
o que acontecia, mas ela continuous a falar em alto e bom som:
-
Padre, eu amo esse homem! Esse homem é meu! Se não
puder ser assim, vou sair daqui e irei para um convento para dedicar minha vida
a Deus.
-
Minha filha! Que é que você está dizendo? Porquê não
falou nada antes?
-
Eu pensei que era ilusão minha, mas no momento em que
vi ele se tornar marido dela, senti que seria a última oportunidade de
encontrar o que andei procurando em vão. Francisco, case-se com ela e eu vou
ser freira. Se aceitar ficar comigo, prometo agora ser fiel para toda a minha
vida. Pode marcar a data do casamento, até mesmo agora eu aceito e aproveitamos
todos os preparativos.
Depois de falar isso, Margarida sentou-se no banco e
começou a soluçar convulsivamente. Carlota não sabia o que fazer. Queria pedir
ao padre para seguir com a cerimônia, queria atender a filha e se estabeleceu
uma celeuma complete. A noiva, diante da revelação inquiriu de Francisco o
significado daquele fato e o coitado ficou sem palavras. Em nenhum momento
desconfiara de nada e não soube o que responder. Tomando isso como uma forma de
ocultação da verdade, ela decidiu que não queria mais se casar, rumando para a
saída e abandonando o local. Francisco, sem saber como agir, ficou longamente
parado, seus olhos perdidos no vazio, tentando atinar com o significado do
ocorrido.
Margarida ficara transtornada? Ou quisera fazer uma
travessura? Não seria admissível pois jamais lhe dera motive de desgosto.
Sempre lhe atendera com boa vontade, fizera suas vontades, seus caprichos de
menina mimada. Aos poucos foi penetrando em seu intelecto que, muitos dos atos
tomados por manhas de menina rica, na verdade haviam sido tentativas de chamar
sua atenção. Ele é que não se dera conta, imaginando estar muito abaixo dos
anseios dela. E se estivesse enganado e se tratasse realmente de um mero
capricho de Margarida! Enquanto isso se passava, a capela aos poucos foi se
esvaziando, os convidados, diante da retirada da noiva voltaram para suas casas
e a capela ficou praticamente vazia.
Restavam ali apenas o padre, Francisco, alguns peões e
criadas, e a família de Carlota. Esta pediu escusas ao padre, lhe recompensou
generosamente dizendo-lhe que conversariam sobre o assunto em outro momento.
Agora precisava por ordem em sua cabeça, na da filha e tomar pé daquela balbúrdia.
A notícia do casamento desfeito por obra de Margarida
interferindo no momento crucial, se espalhou por toda região como fogo em
rastilho de pólvora. Muita gente falou o que devia e o que não devia. Margarida
cogitou em ir realmente para um convento, para assim permitir à mãe aos poucos
abafar o escândalo. Estavam a pensar nessa possibilidade, analisando as opções
que o padre havia sugerido, quando Francisco entrou no jogo.
À tardinha, na hora do lusco-fusco, quando as lides do
campo estavam encerradas e todos se recolhiam aos seus lares para o repouso da
noite, ele se apresentou na casa grande e pediu para conversar com dona
Carlota. Ela o recebeu imediatamente e quis saber se havia algum problema
acontecendo na fazenda. Nos dias que seguiram ao casamento frustrado, ela
ficara totalmente desligada de tudo.
-
Não há nada demais com a propriedade, com o gado, nada
mesmo, dona Carlota.
-
Então o que o traz aqui Francisco? Você deve estar
descontente com o seu casamento desfeito por obra de minha filha. Ela está se
preparando para ingressar num convento. Assim ela sai do caminho e você pode
refazer sua vida com sua noiva com calma.
-
Não é isso que estou pensando fazer, dona Carlota.
Estive pensando sobre várias coisas e me dei conta que a menina Margarida
muitas vezes me deu sinais de estar interessada em mim como homem, mas eu não
percebi. Não me considerava digno de levanter os olhos para ela pensando em
algo assim.
-
Não que isso seja alguma coisa comum, mas eu não teria
ficado nem um pouco surpresa e menos ainda, descontente se isso viesse a
acontecer. Para dizer a verdade em muitos momentos cheguei a desejar que assim
fosse.
-
Não sei agora, mas se a menina Margarida quiser pensar
melhor e deixar de lado a decisão de ir para o convento, estou disposto a fazer
uma tentativa de nos entendermos.
-
Podemos fazer a prova agora mesmo. Basta eu chamar
minha filha e perguntar a ela. Você quer?
-
Se a senhora não se importar, pode chamar.
Carlota foi até a porta do escritório, abriu e foi até
perto do quarto de Margarida dizendo:
-
Minha filha, venha até aqui comigo. O Francisco quer
falar contigo.
-
Ele deve estar fulo da vida comigo. Quer me dar um
sermão. Eu mereço, mas não quero ouvir.
-
Acho que você deve ouvir o que ele tem a dizer. Na
verdade não é nenhum sermão.
-
Peça a ele para esperar um pouco que eu já vou. Vá até
lá e conversem mais um minuto. Vou só pentear meu cabelo.
Carlota voltou para junto de Francisco que imaginou a volta
da mãe sozinha significar uma recusa. Mas logo ouviu:
-
Ela já vem aí. Só quer pentear o cabelo que lavou não
faz tempo. Estava com medo de que você estivesse brabo com ela e quisesse lhe passar
um sermão.
-
Quem sou eu para fazer isso, dona Carlota.
-
Estaria em seu pleno direito, pois ela interrompeu seu
casamento no momento mais importante.
-
Mas nunca me passaria pela cabeça dar sermão na
menina. Pensei sim em pedir a conta e ir trabalhar em outro lugar. Só não fiz
isso em gratidão à patroa que foi muito boa comigo quando ainda era menino.
-
O que fiz, foi bem feito e não me arrependo.
-
E eu nunca poderei agradecer o suficiente.
-
Você agradece a cada dia de trabalho dedicado que faz.
Não precise mais nada Francisco. Meu desejo era ter tido um filho como você e
talvez ainda venha a ser, não um filho, mas genro. Isso significa ser filho de
maneira indireta.
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